Este perfil foi escrito originalmente em 2012 em comemoração aos 90 anos do sambista Riachão. Ele nos deixou aos 98 anos, no dia 30 de março de 2020. Por causa dos decretos que proíbem aglomeração devido a pandemia da Covid-19, os baianos não puderam se despedir de Riachão, o malandro mais querido das rodas de samba. Apenas os familiares acompanharam o velório.
Conhecendo Clementino
Foi atravessando o Beco Língua de Vaca, no Garcia, bairro de classe média baixa de Salvador, que eu encontrei o malandro mais famoso da cidade. Malandro, neste caso, tem um andar ritmado, fala arrastada, sorriso no rosto, gentileza, irreverência e muita história para contar. Naquela tarde eu vi Clementino Rodrigues, e não o conhecido Riachão, que sempre aparece vestido de terno, toalhinha no pescoço, boina na cabeça e sapatos de boêmio de duas cores. Esta elegância, sua marca registrada, não vi neste encontro.
Vi de perto a elegância natural, despretensiosa e até um pouco ingênua do poeta do samba, dono de valiosas crônicas musicais da Bahia. De bermuda, facão na cintura, sandálias de dedo e camisa no ombro, ele jogava milho para as galinhas confinadas em um galinheiro improvisado no quintal, nos fundos de sua casa. Ali é a roça de Riachão, como ele mesmo intitula, perdida na Salvador de edifícios e monóxido de carbono. Bananeiras, horta, aipim e quiabo. Terra. Natureza é o que se vê por ali.
De tão entrosado com o ambiente, tal qual um camponês cuidando de seus animais com paciência e dedicação, ele nem parecia o artista do samba, cheio de ginga e badalado pela mídia. Mas era ele. Sem holofotes. Clementino, simplesmente.
― Riachão?
― Pois não, sou eu mesmo, minha fofinha!
Os meus olhos percorreram todo o seu corpo negro e miúdo, no sentido de gravar na memória o Riachão que tinha acabado de conhecer. Reconheci o bigode, as pernas levemente tortas e por fim, o seu sorriso. Ah! Aquele sim é inconfundível! Acabava de conhecer Clementino. Riachão desabrocharia mais tarde.
Riachão valentão
― De onde vem o apelido Riachão?
― Antigamente os mais velhos falavam de uma forma muito diferente… sabendo de minha fama de brigão e valente, eles falavam pros filhos não se meterem comigo, porque eu era um riachão! Quer dizer, um menino difícil de dominar, entende menina ― Explica interessado em traduzir para mim o seu passado. Hoje, ele se diz o mesmo defensor das boas maneiras, mas a bravura dos punhos fechados ficou na infância.
O apelido o acompanha desde a pouca idade, passando pela adolescência e a vida adulta, inclusive no tempo em que era alfaiate e depois office boy do extinto Desenbanco, fundado em 1966, muito influente no processo de desenvolvimento dos serviços e do comércio na Bahia. Os anos foram passando, e Riachão foi construindo a sua carreira de sambista, em paralelo com a de alfaiate. A malandragem aprendida nas rodas de samba, o tornou popular. Hoje, ele é um personagem. Um símbolo que não fica em altar e muito menos é intocável. Vai para a rua, anda de ônibus, sobe e desce as ladeiras da cidade e nunca passa despercebido.
Filho de José Euzébio Rodrigues, o José Criolino, e Maria Estefânia Rodrigues, Riachão e seus 15 irmãos nunca conheceram a fartura. Era mais uma família pobre e negra, do início do século 20, de origem interiorana, lá de Santo Amaro da Purificação que passaram a viver na capital baiana. Conviveram com muitas dificuldades, mas nunca encararam a fome.
“A gente não era rico, mas também nunca ficamos sem comer, um ajudava o outro, diferente de hoje em dia…”, queixa-se o pequeno notável.
O cronista musical da cidade
Presença de palco nunca lhe faltou. Aos nove anos, soltava a voz e embalava o público com os clássicos do samba carioca, que ele ouvia no rádio. Ele e quase todos os admiradores deste ritmo no país. Houve um tempo em que somente o Rio de Janeiro propagava o samba, e por isso, há quem diga que ele nasceu nos morros cariocas. Polêmica. Para Riachão, o samba nasceu na Bahia, e não aceita qualquer outra ideia. “O samba nasceu na Bahia, e sabe por quê? Porque o Brasil nasceu na Bahia. E quem trouxe este samba foi os negros, cantando o samba na senzala, fazendo o samba de roda.”, teoriza o mestre.
Esta mística sobre o surgimento do samba mexe muito com Riachão. E mais ainda, a vitalidade que ele esbanja, parece vir também do orgulho que sente de ser baiano, malandro e sambista. “O samba pra mim é Deus. Deus é a música e a música é o samba.”, é o que ele acredita. E para ilustrar a sua devoção pelo samba, segundo ele, nascido na Bahia, ele arranca da memória um de tantos outros casos marcantes de sua vida. O dia que ele compôs o seu primeiro samba.
“Menina, isso já faz muito tempo. Eu estava saindo da alfaiataria, isso em 1935 ou 36, e vi um pedaço de papel de revista no chão. Peguei e Jesus me fez ler o que tinha escrito -Se o Rio não escrever, a Bahia não canta – aquilo não saiu de minha cabeça…”, conta. Após um dia de trabalho, preparando-se para dormir, Jesus, o seu parceiro de trabalho, entra em ação e manda o seu primeiro samba. Sim, Jesus é o seu parceiro nas composições, e isso é Riachão quem diz… E quem vai se opor?
Aos 20 anos, o artista tenta ir além das ruas e apresenta-se na Rádio Sociedade da Bahia, em busca de uma chance para brilhar. Naquele tempo, lugar de artista bem sucedido era na rádio. Assumiu a sua verve de sambista, e o sucesso põe-se a acontecer. Ele e seu parceiro fiel não pararam mais de produzir. Jesus nunca mais pediu férias. Uma onça que fugiu do zoológico, a queima de Judas na Praça da Sé, o incêndio que atingiu o Mercado Modelo, tudo era motivo para um samba. E por isso, ganhou um sobrenome: Cronista Musical da Cidade, dado pelo radialista Ubaldo Câncio de Carvalho, considerado, na época, como o melhor comentarista esportivo do norte e nordeste.
Dia a dia do artista
Depois de passar parte do dia na sua roça, cuidando das galinhas e da horta, Riachão entra em casa, e se prepara para dá um passeio pelo centro da cidade, caso não tenha compromissos profissionais ou tarefas domés-ticas a cumprir. Embora a Rádio Sociedade da Bahia não promova mais artistas como antes, Riachão, ainda sim, tem o seu palco. Visto que, o sucesso não é mais tão fervilhante, mas o respeito e a reverência ao malandro continuam de pé.
Os exemplos mais recentes de trabalho são os shows que fez pelo Brasil e alguns países como França, Alemanha e Cuba, em meados do ano 2000. Riachão também participou do DVD da cantora Beth Carvalho, gravado em 2006, o Beth Carvalho: Canta o Samba da Bahia. E mais, se tornou pop depois da regravação feita por Cássia Eller, do seu samba Vá Morar com o Diabo e foi tema do documentário Samba Riachão, de Jorge Alfredo. Além da mídia cultural, que sempre o procura.
As saudades e as dores de um malandro
Ele sorri. Em vários momentos, seu assovio chega antes dele, avisando que se aproxima a simpatia. Canta, quando não está conversando. Faz rima, samba com as pernas levemente tortas. Mas entre uma piada e outra, ele também chora. Um choro de saudade, outro de tristeza. Riachão tem as suas dores.
Como todo malandro que se preze, ele idolatra as mulheres. Todas e por diversos motivos. As mulheres que marcaram profundamente a sua vida foram sua mãe, imortalizada numa foto emoldurada, guardada no seu quarto, e sua esposa Dalva, morta em um acidente de carro, em 2008 no Rio de Janeiro. Dalvinha como a chamava, foi o seu grande amor. Tinham uma vida tranquila. Aos 86 anos, em 2008, ele passou a ser homem viúvo. “Eu pedi pra ela não ir, mas ela não me ouviu…”, comenta emocionado.
Apesar da tragédia, e da saudade dos que já foram, Riachão é feliz. A alegria, muito conhecida, apesar de ser sua marca, não é marketing. Em novembro, Riachão completa 90 anos. Muito cedo ainda para comemorar? Talvez. Pensando bem, não. O festejo poderia durar o ano todo. O ano de Riachão. Justo e merecido. Histórias não faltariam para contar.
Jornalismo literário por Flavia Vasconcelos para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 58 a 63.
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