Confesso que eu tento me manter afastado do BBB de todas as maneiras. Pouco me importa os dilemas provocados por um confinamento pensado para desestabilizar pessoas e levá-las a cometerem impropérios variados em nome do entretenimento. Regozijar-se do sofrimento alheio nunca foi do meu agrado, não seria agora, mais maduro, que haveria de ser diferente.
Mas o que se viu nessas primeiras semanas de confinamento me chamou à atenção. Em detalhe, a forma como Lumena Aleluia, Karol Conká, Nego Di e Projota, todos negros, se postaram diante de Lucas Penteado, também negro, sempre de maneira inquisidora, julgadora e violenta.
Numa casa em que os residentes temporários, atraídos pela possibilidade de embolsar o prêmio final de um milhão e meio de reais, além dos inúmeros prêmios durante o programa, a Globo parece ter atraído o que de pior existe por aí. Se o objetivo era impulsionar audiência pelo televisionamento do absurdo, Boninho, manda-chuva da atração, conseguiu.
Sobre lugar de fala
O Youtuber e publicitário Spartakus lançou vídeo em sua conta do Instagram em que fala com profundidade sobre lugar de fala. Ele diz:
“O fato é: ninguém tem autoridade para falar de racismo só porque é preto. Porque lugar de fala não significa autoridade, e sim ponto de vista.”
O conceito sobre lugar de fala está explicado no livro “O que é lugar de fala?”, de Djamila Ribeiro, muito comentado, pouco lido e menos ainda compreendido.
Nele, Djamila afirma que lugar de fala é a percepção individual vivida por diferentes pessoas, em uma mesma experiência. E essa percepção vai variar de um grupo para o outro. Mas, conforme o livro deixa muito claro, TODOS TÊM LUGAR DE FALA. Contudo, historicamente, apenas um ponto de vista é dominante, tem mais visibilidade e respeito em qualquer cenário. Assim, o livro incentiva que as diferentes realidades sejam ouvidas e pesadas em igualdade de aceitação do argumento.
Continua Spartakus, “como a própria Djamila diz no livro, isso não tem nada a ver com uma visão essencialista de que só o negro pode falar de racismo. Porque o lugar de fala não significa que a pessoa está certa só por fazer parte do grupo oprimido. Ter lugar de fala não significa saber o que está falando. (…) estar na condição de oprimido não significa automaticamente ter consciência de como funciona a opressão.”
Para muitos, porém, a vestimenta da militância identitária é vestida como argumento de autoridade inquestionável. Mas como Spartakus afirma no vídeo, “a luta é por igualdade, não por supremacia.”
Então por que tantos seguem o caminho da opressão, com dedo em riste e propondo servilidade a um igual, fazendo da militância um trono ao qual se autoproclamaram rei ou rainhas?
Para tanto, vamos falar de Paulo Freire e de psicologia.
Oprimido opressor
Uma das obras mais importantes de Paulo Freire, “Pedagogia do oprimido” tem uma das frases mais celebradas na educação.
“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.”
Freire apresenta no livro o conceito de educação bancária. Berenice Darc, diretora do Sinpro-DF explicou o que isso significa:
“Educação bancária é exatamente uma educação na qual a relação entre as pessoas – entre professor e estudante – acontece numa perspectiva vertical. De um professor que tem saberes, conhecimentos, alguém que sabe tudo, e de um estudante que nada sabe, em que a experiência de vida e a perspectiva de vida do estudante não é colocada em movimento.”
Logo, de acordo com Freire, na educação bancária o estudante é um receptáculo passivo do conhecimento que vem de cima para baixo e que não aceita questionamento, pois há uma autoridade estabelecida.
Percebe-se, pois, a partir desta visão de Freire, que Lumena, com seu dedinho apontado, fala empolada e postura arrogante, é fruto exato dessa educação bancária. Na figura de professora, ela assume a cadeira de opressora, pois esta é a relação de poder e dominação que aprendeu ser a correta.
Mas Lumena e todos os outros, foram além.
Além da autoridade sem fundamentos, agiram de maneira violenta e extremamente repressora. E a psicologia aventa caminhos que levaram a esta explosão.
Esconderijo das próprias fraquezas
ContardoCalligaris, psicanalista e colunista da Folha de S.Paulo, é uma das vozes mais ativas sobre como a violência da repressão que alguém impõe é diretamente proporcional à dificuldade que tem para reprimir certos impulsos. Ou seja, quando alguém comete um crime de homofobia, o criminoso luta contra um desejo interno que necessita ser reprimido. E quanto maior o desejo, maior a violência.
É fácil encontrar inúmeros casos que corroborem esta tese. Sarah Palin, ex-governadora do Alasca, nos EUA, e candidata a vice-presidente na chapa de John McCain em 2008, sempre foi voz das mais ativas contra o aborto, mas não foi capaz de esconder ter feito ela mesma um procedimento abortivo.
Na Hungria, um deputado de partido de extrema-direita, conhecido por suas falas homofóbicas, renunciou ao ser flagrado numa orgia gay.
No Brasil, pastores evangélicos cobram celibato de fieis, mas têm lista extensa de amantes na congregação.
A própria maneira que a esquerda progressista tem de atuação indica este caminho. Afeita a construir pedestais para autopromoção de virtu-des, é conclusão possível que ao assumir a posição de opressores violentos do comporta-mento alheio, os participantes esteja apenas escancarando os fantasmas que tanto lutam para conter.
Ao se absorver esta via, cria-se um paradoxo: para quem conhece os meandros da mente, a tentativa mais árdua de esconder fraquezas é a forma mais segura de exibi-las em sua intensidade.
Multiplicação da dor
Outra vertente, não necessariamente exclu-dente à anterior, é a de que a experiência trau-mática vivida por alguém faz com que ela sinta, mesmo inconscientemente, a necessidade de perpetuar a dor para que a experiência vivida não perca relevância.
Em um ambiente em que a esquerda progres-sista bate cabeça entre si, adotando perfil desagregador em vez de conciliador, esta é também conclusão viável.
Funciona assim. Suponhamos que você tenha vivido uma situação traumática que deixou sequelas. Agora, imagine que no mundo inteiro, somente você viveu esta dor. Ao contá-la, mesmo com minúcia de detalhes, ninguém poderá entendê-la por completo, porque vai estar muito fora da realidade que todos estão inseridos.
Sabe a dificuldade de alguém da periferia conseguir explicar o que significa uma abordagem policial de madrugada a alguém de área nobre?
É o mesmo conceito que baseia filhos que apanharam dos pais quando crianças, e agora, na condição de pais, perpetuam a dor batendo nos filhos, e escondendo a covardia no argumento pífio de que “eu apanhei e tô aqui até hoje.”
O medo é o de que, ao conciliar, ao contribuir para a redução sistêmica da origem do trauma, aquilo que tanto machuca e tanto define alguém pode perder relevância, ser elemento quase incompreensível.
Assim, multiplicar a dor significa uma tentativa desesperada de atrair outros para a sua própria dor, para sua própria ferida nunca cicatrizada, para tornar a vivência tão substancialmente transformadora em algo tangível ao outro.
Perverso, decerto. Mas é também apelo de quem está perdido.
E afinal?
Mesmo que se pesem as circunstâncias, a educação bancária, a busca pela superioridade moral para esconder fraquezas, a necessidade de multiplicação da dor para reavivar signifi-cância de traumas passados, o cerne entre maldoso e criminoso persiste.
Há dolo, há consequências. Há certeza da vali-dade das premissas autoevidentemente boas de suas ações. Esquecem, porém, que as maiores atrocidades da história foram come-tidas por gente que tinha crença inabalável de estar fazendo o certo.
Por isso, em alguns momentos, entendo até que o caminho da análise segue outro rumo, um em que se questiona o caráter, com pitadas de sadismo.
O entendimento não absolve ninguém. Mas pode ser um caminho para que uma auto-avaliação possa encontrar estes sintomas que insistimos em repetir e propagar pelo mundo.
Artigo para a Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 35 a 38.
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