No fim de 2019 eu passava férias na Bahia. Estava perambulando pelos cenários exuberantes da Chapada Diamantina quando recebi um convite de meu amigo Licínio Cardenas para eu fosse o entrevistado de seu podcast “O Brasil não é para amadores”. Na pauta, no crepúsculo do primeiro ano da (indi) gestão Bolsonaro, Licínio propunha um debate sobre como o governo se utilizava de cortinas de fumaça para seguir adiante com suas intenções – impossível dizer que seguia com seus planos, pois ausentes por completo da operação deste governo.
Assumi a posição que mantenho até hoje sobre o desenrolar de ações do governo: não há qualquer cortina de fumaça. E muito me espanta que ainda haja gente, inclusive gente conhecedora com profundidade de como opera o bolsonarismo, que recaia neste erro de avaliação.
Mas antes de entrar nos detalhes que fundamentam meu entendimento, vamos observar o caso da prisão do deputado federal bolsonarista Daniel S. Estão presentes neste episódio exatamente os quesitos que levam a não entender que haja cortina de fumaça, mas, sim, um bando de desgovernados, que age com segurança de sua impunidade.
A sequência cronológica
No fim da segunda semana de fevereiro, noticiou-se o lançamento de um livro-entrevista do General Villas Boas, ex-Comandante Geral das Forças Armadas entre 2015 e 2019. Nele, Villas Boas admite que um polêmico tuíte de abril de 2018, um dia antes do julgamento do habeas corpus de Lula no STF, era uma ameaça velada de intervenção militar no Brasil.
O caso gerou revolta 3 anos atrasada. No dia 15 de fevereiro, o ministro do STF Edson Fachin divulgou nota repudiando a confissão de ameaça golpista.
E como resposta a um tuíte de Antonio Lorenzo, Villas Boas voltou a se manifestar sobre o assunto, em tom sarcástico:
O ministro do STF Gilmar Mendes reagiu, também pelo Twitter:
Foi em meio a esta turbulência que o vídeo do em breve ex-deputado Daniel S (então PSL-RJ, agora filiado ao PTB, com a bênção e visita de Roberto Jefferson) foi ao ar.
Cheio de termos chulos e ânimos exaltados, Daniel navega por precauções para não incorrer no erro de uma agressão direta a Fachin, Mendes, os 2 ministros envolvidos no bate-boca público com 3 anos de atraso, e Alexandre de Moraes, alvo preferencial da horda bolsonarista. Mas ele escorrega ao dizer sonhar com violência, ao desejar ver os ministros do STF presos e agredidos.
Fez-se impossível não associar esta fala do experiente presidiário deputado ao caso dos EUA em 6 de janeiro, quando o chamado de ex-presidente americano Donald Trump à insurreição quase resultou num golpe de Estado. E o STF, por Alexandre de Moraes, resolveu agir.
No mesmo dia foi emitida a ordem de prisão contra Daniel S., apreendido em sua residência em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. Fez, claro, o seu espetáculo. Certamente contava com imunidade parlamentar para se proteger das agressões e ameaças proferidas. Porque usou-se no Brasil de agora confundir ameaça com opinião.
No dia seguinte, a decisão monocrática de Moraes foi referendada por todos os 11 ministros do STF. O presidente da Câmara foi instruído a avaliar em votação se a prisão deveria permanecer ou não.
Mas Daniel S. já estava condenado. Primeiro pela opinião pública; segundo, pela própria Câmara, pois é figura estranha à ordem da casa; e terceiro, porque o placar de 11 a 0 no STF não deixava brecha interpretativa possível para que a Câmara – que desativou o Conselho de Ética durante a pandemia, deixando gente como Flordelis trabalhar com tornozeleira eletrônica e Aécio Neves circular livre, leve e solto pelos corredores como político de carreira que é – arregimentasse reação.
Acima de tudo, especialmente, o Congresso entendeu, especialmente o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), que bater de frente com a mais alta corte do país não seria aconselhável quando se tem tantos iguais como réus. Não convém confrontar quem um dia haverá de lhe julgar. Entregou, então, Daniel S. em sacrifício, confirmando a prisão com votação expressiva.
O STF percebeu a necessidade de se jogar o jogo jurídico contornando as bordas da Constituição, porque a Democracia está sendo minada por dentro, com bandidos usando de seus instrumentos de proteção para derrubá-la. A história recente não favorece essa postura.
Foi com a distorção das leis, munida de um poderoso senso de justiçamento – tão poderoso que fez da convicção elemento processual mais relevante que a prova – que a Lava-Jato descarrilou e foi exterminada por interesses políticos, exposição de escândalos jurídicos, e uma narrativa torta do governo de que a corrupção chegou ao fim. Afinal, não há corrupção se não houver investigação, especialmente aquelas que visam familiares diretos. O filé mignon que se quer dar a um filho vai de Embaixada até o aparelhamento das polícias. Um santo pai.
Cortina de fumaça pra quê?
Mas disseminou-se a avaliação de que todo este bafafá era nada mais que cortina de fumaça. Que o governo planejava tal insurreição verborrágica – com o argumento de que sempre há algum fanático disposto a ser mártir pela causa – para proteger sabe-se lá o quê, talvez o fato de que a vacinação tivesse sido interrompida por falta de vacinas.
Ora, ora, ora. Tratemos as coisas como elas são. Vamos analisar a conjuntura, traçar possiblidades e pergunta, ao fim, o que é mais provável.
Por que o governo estaria interessado em esconder o fato de que faltam vacinas, quando este mesmo governo atua abertamente contra a vacinação e as medidas de segurança? Que lógica há nisso? Não é correto, penso, que se prepare ação para evitar que descubram a calamidade, quando, na verdade, o governo exibe orgulhoso o efeito do caos que provoca.
Adicionalmente, o governo mostra reiteradamente não ter qualquer preparo ou planejamento para virtualmente nenhum item sob seu controle. Estaria, pois, o governo inaugurando o planejamento de ações justamente com uma cortina de fumaça para esconder o que mostra abertamente?
Francamente, me parece absolutamente improvável. Principalmente quando se analisa a alternativa.
A ordem cronológica indica uma escala crescente de animosidade. No que um troll como Daniel S. se sentiu tentado demais a expor sua veia mais truculenta – como sempre o fez.
Agiu por conta própria, um idiota com iniciativa, sem controle nem avaliação de consequências, crendo piamente que foro privilegiado e o fisiologismo da Câmara o protegeriam.
Mas o tiro saiu pela culatra.
Sob esta perspectiva, o que parece mais provável? Que o caso tenha sido obra de uma inconsequência de um ser violento e de capacidade cognitiva limítrofe, ou que tudo seja um sofisticado plano, estratégia intrincada, mártir apontado e tudo!, de um governo que não se prepara para absolutamente nada?
Parece-me claro o desfecho.
No fim, atribuir cortina de fumaça ajuda a, de uma certa forma, levar racionalidade às ações erráticas do governo. Ao fazer isso, indica-se que, na verdade, o governo tem um propósito, ainda desconhecido, mas tem.
Só que ali há um vazio de ideias, que são regurgitadas na opinião pública diariamente. O governo opera às claras, exibe toda a sua pulsão de morte. Só que a atrocidade daquilo a que ele se propõe faz a pessoa ‘normal’ não acreditar no que lê, ouve e assiste. “Não pode ser. Isso não pode ser verdade. Estão brincando, é da boca pra fora. Tem que ter algo escondido. Não é possível.” Só que, ora, é perfeitamente possível.
O jogo está escancarado. Demorou, mas o STF percebeu que não tem acordo nem veja bem. Que não se está lidando com gente que opera na racionalidade.
Ignorar os incentivos que movem essas pessoas e elevá-las a um nível de sofisticação que não têm só as beneficiam. Assim, operam à vista de todos, mas saem sem arranhões, porque “não pode ser”. É maldade descoberta e, por isso, invisível.
Artigo publicado Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021, páginas 12 a 17.
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