Quando FHC foi eleito para seu primeiro mandato em 1994, seu principal mote de campanha era o sucesso do Plano Real. A derrubada da inflação abria as portas de um novo Brasil, em que muita gente descobria possibilidades recentes, como poder carne de frango – em período de hiperinflação, comer carne era luxo para poucos.
Em 1998, foi reeleito prometendo vencer o desemprego. Lula assumiu em 2002 com um novo projeto de Brasil. Apelou ao Lulinha paz e amor para envolver o centrão e o mercado, despintando-se de ameaça. Até mesmo Dilma, em 2010, foi eleita tendo a continuidade do Brasil lulista como centro de sua campanha.
Entre 1994 e 2010, portanto, as eleições políticas para a presidência da República foram pautadas, em maior ou menor grau, em debates sobre planos de Brasil.
A partir de 2014, as eleições tomaram outro rumo, visto também em 1989 – exemplo que foi tomado erroneamente como exceção de uma democracia que aprendia seus passos. No duelo Dilma x Aécio, discussões sobre Brasil foram deixadas integralmente de lado e fez-se a vez de acaloradas acusações do outro e autopromoções como vertentes da moralidade autoevidente.
A campanha de Dilma atacou vergonhosamente Marina Silva.
Aécio transpirou misoginia e se posicionava como líder de uma frente de correção pública, validada pela vilania do PT exposta com a embrionária Lava-Jato – ou teria sido esta consequência de uma percepção consolidada em grande parte da população? (Nunca se deve subestimar o “precisamos fazer alguma coisa” dito por gente que enxerga nas travas democráticas e do devido estado de Direito limitações para julgamentos de entendimentos generalizados.
Desde então, não se debate mais projeto de Brasil. Debate-se tão somente rasos argumentos autoevidentes, em que alguns emergem como opção única – claro – para resolver os problemas do Brasil. Viveremos sempre sobre a sombra do sebastianismo.
O retorno de Lula ao cenário político nacional, então, retoma o inimigo concreto que Bolsonaro elege esporadicamente para personificar sua luta contra um inimigo difuso e incompreensível, como globalismo, comunismo e afins. Por isso mesmo, este inimigo difuso pode se mutar em literalmente qualquer coisa.
Lula não é a personificação do inimigo difuso, aquele que concentra todos os males. Se para os bolsonaristas, o presidente concentra todas as virtudes, Lula é o seu exato oposto.
Num primeiro olhar – um tanto preguiçoso –, esta é uma conclusão possível. Para os bolsonaristas, Lula é o polo oposto. Só que é preciso entender a forma de atuação do debate bolsonaristas para compreender o quanto esta conclusão é equivocada.
Na formulação de um inimigo difuso, conforme escrevi em artigo na da Papo de Galo_ revista #1, ele assume qualquer forma. Lutar contra um inimigo difuso é tarefa hercúlea, porque a depender da imersão retórica dos fanáticos, tudo é possível. E estão estes convertidos à mercê da vontade do tirano, que direciona as babas iradas da claque a partir de instruções de gabinetes do ódio.
Ou seja: quando há um extremista – no caso, um representante fidedigno da extrema-direita – no palco político, literalmente qualquer outra pessoa que lhe faça frente será convertido em polo. Assim, no bolsonarismo, a polarização é dada, é a regra do jogo.
De que maneira, então, Lula é a polarização que tanto se deseja evitar?
A princípio, é o debate sobre planos de Brasil. Mas isso deixa de acontecer com a presença de Bolsonaro, não com a presença de Lula. No que se chega a duas outras conclusões.
A primeira é a de que para este grupo que assim se expressa há um desespero para se retomar a pauta pública, para impor a narrativa que sempre controlou. É, portanto, a birra de uma elite que perdeu por completo as rédeas da opinião pública, e para poder retomá-la, entende que é preciso que se pinte os indesejados de outras cores que não as suas.
Lula, no entanto, não está mais próximo de Bolsonaro do que está justamente dessas pessoas. Dentro de um entendimento consolidado do perigo que é se manter Bolsonaro no poder, o rival com maior potencial a batê-lo é escanteado por conta de, voltemos a ela, uma pretensa superioridade moral da direita limpinha.
Foi investido tempo e recursos demais vilanizando Lula e o PT. É preciso manter essa linha, em nome da tão famosa palavra em tempos de superficialidade de BBBs, de coerência, de “ser fiel a seus princípios”.
E que princípios são esses em que se permite abrir mão da democracia? Que princípios são esses, afinal, que unem como polos extremistas um projeto de ditador, claramente inapto, inepto e corrupto, a alguém que sempre atuou dentro dos limites da democracia?
Unir Bolsonaro e Lula como extremos é um desserviço justamente para o iluminismo do debate público que pretensamente se deseja.
Não é, pois, a democracia o bem maior dessa gente. Nem a elucidação de visões para amansar o diálogo. É, pois, uma sanha punitiva que encontra escape na aniquilação de Lula e do PT.
Há, por fim, uma terceira via de conclusão possível. Ver, depois de tanta campanha negativa, Lula se reerguer é desesperador para quem se mantém às margens do debate público, irrelevantes na pauta. Ressentimento – pra não dizer inveja – define, em partes.
Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #13, de 17 de março de 2021, páginas 43 a 46.
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