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O brinquedo chegou! Rola o baba!

O brinquedo chegou! Rola o baba!

O desporto baiano nasceu de uma necessidade de afirmação. Os ingleses não deixavam os locais jogar cricket. Os jovens nativos sofriam pirraça dos ingleses. Os súditos da rainha botavam a moral.

Os meninos da Vitória queriam jogar o tal cricket, praticado com bastão e bola, parecendo, mal comparando, beisebol. Os baianos eram reduzidos a coadjuvantes. Humilhação… ‘bulin’, como chamam hoje, estas perturbações.

Os ingleses aceitavam os baianos, quando faltava algum deles de bigode virado. Mas permitiam, como bons gentlemen, que os nativos buscassem a bolinha saltitante quando ela descia por alguma ribanceira. Thank you very much!

Os jovens do Corredor da Vitória cansaram daquela sensação de pertencimento a um mundo subterrâneo. Decidiram fundar seu próprio clube, para jogar também seu cricketzinho e dar uma merecida banana praqueles gringos nojentos.

Marcaram no casarão da família Valente, no dia 6 de maio de 1899. Se morar na Vitória hoje, é moral, imagina quando só as famílias do high society podiam ter uma casona naquela artéria significativa para o pulsar da nossa liberdade.

Só que caiu um toró , e a reunião ficou pro outro domingo, aniver da libertação dos escravos que ninguém nem lembrava. Coincidiu que o Club de Cricket Victoria nasceu 13 de maio, data da famosa Lei Áurea, da Princesa Isabel.

A coincidência parece antecipar o que viria a acontecer com o clube fundado pelos jovens da alta burguesia de Salvador. Nascido entre os brancos, renascido entre os catadores de lixo, eis aí uma saga que dava para Glauber filmar.

O mesmo Vitória dos barões reinventou-se vencedor e poderoso, ao buscar sua nova identidade no lúmpen-proletariado de Canabrava, onde construiu um estádio à beira-lixo do aterro sanitário de Salvador.

Voltando a 1899, o Vitória ia chamar-se Clube Brasileiro para enfrentar os súditos da rainha do Internacional de Cricket. Mas ninguém tinha camisa e calção verde e amarelo. Não tinha loja de material esportivo no Comércio…

Camisa branca e bermudão preto, todo mundo tinha: o jeito foi nascer com cara de Corinthians. Pensando bem, como o Timão nasceu em 1910, foi o ‘Curintia’ que seguiu o Vitória, ao trocar o rosa, sua primeira cor, pelo alvinegro.

O clube dos brasileiros nasceu com o nome de Victoria na certidão, homenageando o logradouro onde seus 19 fundadores moravam e que tem este nome por servir de chão patriótico para o desfile das tropas que libertaram o Brasil de Portugal, em julho de 1823.

Se a D. Pedro I não restou opção, senão proclamar a Independência, e os baianos venceram a guerra contra Portugal, foi o Vitória, pela via do desporto, que fez Salvador ser respeitada pelos estrangeiros.

Os alvinegros reuniam-se para bater sua bolinha de cricket, e tomaram gosto pelas regatas, tornando-se rubro-negros em 1901, por influência do carioca Clóvis Spínola, que tinha sido remador do Flamengo e viera morar em Salvador.

O Flamengo transmitiu ao Vitória as cores vermelha e preta, já utilizadas pelos remadores do Rio, muito antes da fundação do time de futebol em 1912, como uma dissidência do metido a bestão Fluminense Football Club.

Os remadores rubro-negros causavam, com façanhas comentadas em toda a cidade, como vir da Ribeira à Barra em frágeis canoas em dia de mar bravio. O remo o esporte da eugenia, melhorava a raça, quem o praticava era ‘superior’.

Foi então que o estudante Zuza Ferreira, enviado a Londres pela família, para ver se tomava gosto pelo estudo e voltava mais comportado. Sem dúvida, graças ao Senhor do Bonfim, não se tratava de um menino normal, curtia bagunçar e curtir.

Zuza não se deu com essa história de se enquadrar. Aprendeu o jogo de football, já consolidado na Inglaterra, depois de estreado nas escolas inglesas em 1853, como ferramenta da pedagogia para disciplinar os 11 alunos de cada classe.

Fertilizado na mente inquieta do professor Thomas Arnold, de quem somos devedores, o futebol foi depois adotado pelas fábricas, no auge e no berço da Revolução Industrial. Os clubes funcionavam como extensões das indústrias.

O football serviu como método para controlar o corpo e fortalecer o senso coletivo aplicado tanto nas quatro linhas do campo quanto nas linhas de montagem. Daí o apoio das fábricas ao jogo criado por prof. Arnold, em 1853.

A submissão do corpo às regras e ao senso de coletividade, típicas do ‘football-association’, atendeu à necessidade de implantação de uma cultura industrial que não sustentava só no relógio como forma de agendar nossas rotinas produtivas.

Zuza trouxe duas bolas e um livro de regras. Mostrou as novidades aos amigos, ali no Rio Vermelho, onde morava, em outubro de 1901. Que coisa louca esses jovens correndo atrás desse objeto pulante redondo… Ball… Bola…

A turminha de Zuza bateu os primeiros babas e, apesar de vidraças quebradas e algumas boladas nos transeuntes, conquistaram as pessoas mais bem-humoradas para os divertidos ‘matchs’ disputados por jovens pingando de suor.

Primeiro, os jornalistas não entenderam nada. Noticiavam como distúrbio, transtorno, desordem. Até que um dos nossos ancestrais, publicou o texto do primeiro jogo oficial, com o sugestivo título ‘Festas-football’.

O estilo era de coluna social e o futebol passou a ser tolerado como ponto de encontro da elite. Os jornalistas se preocupavam mais com o comportamento e o modelito dos vestidos das moças bem-nascidas desse tempo de belle époque.

Nem o placar, saía no jornal, tal o critério de noticiabilidade focado no comportamento da elite diante de seu novo brinquedinho europeu. Quanto foi o jogo? Que jogo, rapá? O importante era a silhueta da sinhazinha.

O prefeito Pimenta da Cunha decidiu controlar o futebol na cidade, excetuando-se cinco áreas, na Barra, no Chame-Chame, Largo do Papagaio, Rio Vermelho e Campo da Pólvora. Imaginem aí! Aqui não se pode jogar bola! Kkkkkkkkkkkkkk

Quem quiser reverenciar a figura da ilustre autoridade, integrante do seleto clube do poder, tem a oportunidade de dirigir-se a seu busto, situado à entrada do Mercado Modelo, como homenagem pela contribuição ao esporte e à cidadania.

Foi mais uma de tantas e tantas leis desmoralizadas, hábito organicamente libertário de nosso povo, talentoso para a ironia e a desobediência, qualidades que formam as bases de nosso jeito de ser mais resistente às imposições.

O certo é que a facilidade do jogo parece ter incentivado também a perifa, que passou a improvisar suas bolas, aplicando aditivos de crina de cavalo como recheio a bexigas de boi infláveis, já que só barão tinha grana pra comprar bola.

Pronto, tudo certo! Bastava marcar as traves com dois objetos minimamente visíveis e rola o baba! Mais ou menos com o mesmo espírito com o qual até hoje demarcamos o golzinho fechado na praia com duas bandas de um mesmo coco.

Os riquinhos do Corredor da Vitória, com seus bigodes revirados, imitando os ingleses, e botinas lustradas, antecedendo às futuras Nike, trataram de oficializar seu brinquedo, como proprietários das bolas reconhecidas como oficiais.

O Vitória, o Bahiano de Remo, o São Paulo-Bahia, da colônia paulista, e o Internacional de Cricket fundaram a liga no Largo da Palma, em novembro de 1904. Já em 1905, fizemos o segundo campeonato, antecedido pelo paulista.

O primeiro campeão foi o Internacional. O Vitória jogou fora a chance de ser tetra devido a uma briga besta nos seus verdes anos. Verdes, aqui, é uma referência ao São Salvador, o segundo rival, após o britânico Inter.

Carlos Costa Pinto e Arthêmio Valente discutiram durante uma partida de cricket pra ver quem devia ir buscar uma bolinha perdida numa destas linhas de fundo que todos os dias a vida nos traz e felizmente também leva.

Vá tomar ali e acolá, recomendações mútuas as mamães etc. Terminou que Carlinhos se retou, ficou de mal com Arthêmio, e foi fundar o time de futebol do São Salvador, até hoje vizinho parede-meia do Vitória na avenida na Ribeira.

O verde São Salvador foi bicampeão 1906-1907. O Vitória só viria a ganhar o título em 1908, repetindo a dose em 1909, quando os vizinhos enlutados ofereceram o título à memória do artilheiro que morreu durante a campanha.

Este primeiro clássico baiano, Victoria x São Salvador, era chamado de ‘Ajuste de Contas’. Foi a primeira grande rivalidade que começava a fazer do futebol um jogo bem menos fraterno

que a proposta original do movimento olímpico.

O neo-olimpismo estava em alta, com o retorno dos Jogos organizados pelo Barão de Coubertin, em 1896, na Grécia. Junto com água encanada, iluminação das ruas, urbanização e transporte, o desporto era a senha da modernidade.

Para acessar a ideia de civilização, na era moderna, a mensagem ética do desporto não podia faltar. Na Salvador da virada do século 19 para o 20, esta senha tinha oito dígitos: V-I-C-TO-R-I-A. Atualizando, V-I-T-Ó-R-I-A-1-8-9-9.

É desse período pioneiro do futebol, a formação dos embriões do que viríamos a conhecer por Seleção Brasileira. Os baianos, reunidos no seu Victoria, formaram combinados dos melhores jogadores da cidade para enfrentar os ingleses.

Os primeiros babas internacionais do país rolavam no Campo da Pólvora, onde um dia, quem sabe, ainda teremos uma estação do tão sonhado metrô, ali mesmo onde fica o Fórum Ruy Barbosa.

No tempo dos primeiros jogos de brasileiros contra estrangeiros e seus descendentes, o Campo da Pólvora era conhecido como Campo dos Martyres, alusão aos revoltosos sacrificados pela cruel Coroa portuguesa.

Esta formação identitária via futebol reforçava, menos de 100 anos depois da independência, o sentimento de liberdade, agora contraposto ao domínio inglês, e não mais em oposição a Portugal, de quem ficamos livres em 1823.

Os baianos já curtiam a bola, cercando os quadriláteros, como chamavam os ‘fields’, ou campos. Era tipo u’ma festinha. Os homens, de cartola e paletó; as senhorinhas, em carruagens, brindando em taças de cristal com vinho do Porto.

Tivessem já instagram ou facebook, e imagina a postagem dos ‘selfies’, flagrantes de elegância compartilhados por gente grã-fina que teve o mérito de permitir a Cupido acertar nosso coração com uma bolada.

Só não era assim fácil porque a arte do circo antecipara-se à magia da bola em séculos, desde a Roma dos césares. Nossos primeiros atletas, que faziam às vezes de dirigentes, tinham de negociar com os donos dos circos.

Os circos tomavam conta das praças, para suas apresentações recebidas sempre com entusiasmo. Palhaços, malabaristas, contorcionistas, macacos, luzes e cores atiçando a imaginação no tempo que diversão era escassa.

Para retirar as estacas das pesadas lonas dos circos, era preciso muita lábia e para negociar, ceder aqui e ali, e muitas vezes, pagar alguns mil réis pelo espaço controlado pelos companheiros circenses, já na área séculos antes.

Com sorte, o dono do circo ainda liberava cadeiras para os primeiros fãs do football poderem assistir aos jogos de boa. O Circo Luzitano foi parceiro, ao liberar as cadeiras para um ‘match’ no Campo dos Martyres.

Foi neste estado de arte que fechamos estes primeiros anos de romance com a bola, em uma Salvador em metamorfose, sintonizada com a era moderna, seguindo a força do futebol. Como todo romance quente, teve uma surpresinha.

Sabiam que, muito antes do Bahia tricolor e tão querido campeão, esta primeira liga, chamada Liga Bahiana ou Liga dos Brancos, por seu perfil racista, acolheu um Sport Club Bahia, alvir-rubro, que foi campeão de 1911? Isso mesmo!

Este Bahia vermelho-e-branco, efêmero, provisório, fugaz e desconhecido, também parece avisar algo para o futuro. Foi este Bahia que anunciou a extinção desta primeira liga, para criação da ‘Liga dos Pretinhos’.

A Liga dos Pretinhos, tem nome aparentemente carinhoso, mas tem intenção depreciativa, por aceitar em seus quadros, os jogadores colored (coloridos), jeito refinado do que hoje chama-mos afrodescendentes.

Enfim, a senzala, hoje favela, chegava de ‘com força’ ao ambiente grã-fino do foot-ball, e não demoraria a criar novas e deliciosas posições com a bola, renovando kama-sutrianamente nosso poliamor, como veremos a seguir.


Capítulo 1 em folhetim do livro “Tu és o grande amor da minha vida: As aventuras da bola na cidade de Salvador” de Paulo Leandro publicado na Papo de Galo_ revista #14, de 28 de março de 2021, páginas 80 a 89.


Capa da Papo de Galo_ revista #14, de 28 de março de 2021.

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