Consolidou-se recentemente o entendimento de que a economia do Brasil somente poderá decolar se as reformas forem feitas. Trata-se de uma herança cultural de uma elite que desde o Brasil colônia defendia a escravidão porque ela “quebraria os produtores”. As discussões sobre reformas desde então obedecem a esta premissa: é preciso aliviar o peso sobre os empresários, coitados. E como benefício extra, manutenção de privilégios.
A estruturação do raciocínio segue uma premissa válida – a Previdência é deficitária, dilema global ainda sem solução, se é que há; o sistema tributário nacional é complexo demais; pequenos empreendimentos, em tempos de crise, não têm estabilidade financeira para manter empregos e benefícios – e evolui para uma definição que pende para uma injustiça recorrente. A reforma da previdência aprovada recentemente escancara como a conta sempre sobra para os mais pobres pagarem.
Os privilégios de militares e políticos foram mantidos intactos. Na verdade, para os militares houve até melhoria. A reforma tributária envolve corte de impostos para empresas, mas o imposto de renda segue sem atualização inflacionária, prejudicando exatamente os mais pobres, que se veem comprometendo parte maior de sua renda em imposto.
Para alguns, “é melhor ter alguma reforma que nenhuma”. Esta afirmação não poderia ser mais equivocada. Porque se há uma política pública que aumenta disparidades entre classes, ela está fundamentalmente errada.
O mercado, no entanto, não liga para políticas públicas que diminuam distâncias e promovam o bem-estar coletivo. E se a premissa deles é a manutenção de privilégios, nem ao menos a democracia é um bem assim tão necessário. O que me levou a criar uma expressão: democracia de mercado.
DEMOCRACIA DE MERCADO: Aquela que só é boa coisa quando aprovada pelo mercado, este ser difuso – mas com cor de pele e saldo bancário definidos – que não se envergonha de abraçar o autoritarismo para manter privilégios e ampliar disparidades de classe.
A volta momentânea de Lula é mais um indicativo de como esta gente não se baseia em fatos para decidir suas transações, e assim validar a teoria da democracia de mercado. Porque nunca o tal mercado ganhou tanto dinheiro quanto nos anos Lula. Nunca bancos lucraram tanto, nunca empresas cresceram tanto, nunca houve tanta valorização percentual de ativos de renda variável. Qual a lógica para, então, cair ao primeiro sinal de Lula? Ou subir depois do discurso conciliador de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos?
Porque o tal mercado precisa da garantia que o próximo político a assumir a cadeira seja alguém que conduza seu governo a partir da democracia de mercado. Lula o fez, e o tal mercado pôde respirar aliviado, embora sequer houvesse motivo para palpitações.
Há uns anos li no livro “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas” do físico americano Leonard Mlodinov um estudo realizado em faculdade americana sobre o comportamento das pessoas dentro de um modelo de remuneração variável em ambientes competitivos intitulado “The Role of Financial Incentives and Social Incentives in Multi-Task Settings” (O papel de incentivos financeiros e incentivos sociais em configurações multi-tarefa, em tradução livre). Cada pessoa, a partir de uma série de decisões com consequências financeiras, definiria o quanto ela própria ganharia e o quanto outra pessoa poderia ganhar. Numa escala em que 100 era o máximo possível, a pergunta era se as pessoas atuariam para maximizar seu próprio ganho, ou seja, chegar a 100.
O comportamento, no entanto surpreendeu os pesquisadores. Em vez de maximizar seu próprio ganho, as pessoas, em linha geral, atuavam para maximizar a distância entre o que ela própria ganharia e o quanto outra pessoa ganharia. Ou seja, em vez de um cenário em que ganharia 100 e outra pessoa 90, era preferível ganhar 70, desde que o outro ganhasse 30.
Entender este viés de intenção é importante para estabelecer condições de se mapear com clareza os agentes públicos dentro da política. Humanizar as relações de trabalho contradiz o cerne do que significa ter um negócio que busca o lucro. E sem captar as nuances psicológicas que levam ao comportamento competitivo, as negociações partem de uma posição de inferioridade.
O mercado está pouco interessado em recuperação econômica, mesmo que isso prejudique seus próprios ganhos, e o cenário atual explicita esta análise. Quando confrontados os ganhos, parte-se cegamente para a manutenção de distâncias e privilégios. E tão mais forte é esta postura quanto for a herança elitista e segregacionista da realidade em que está inserido. Não poderia ser diferente o momento que vivemos dada a história do Brasil.
É preciso romper com esta mentalidade. Mas esta é tarefa geracional. Por ora, vale lutar para que não sejam implantadas políticas públicas que visam o aumento de distâncias sociais. Somente causando derrotas estruturais é que a narrativa autoevidente de socorro à elite pode ser alterada com o tempo.
Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #13, de 17 de março de 2021, páginas 60 a 63.
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