Há coisa de poucos dias, me bateu o faniquito da limpeza. Imbuído do desejo da limpeza geral da casa, que pedia completa e cuidadosa faxina, pus-me a postos para a tarefa.
Separei os materiais de limpeza. Encontrei playlist que faria a trilha sonora do trabalho pesado. Planejei o trajeto com exatidão, calculando rastros de pés e necessidades específicas para que o cômodo derradeiro fosse o fechamento perfeito que ainda produziria aquele ‘plin’ de brilho de limpeza dos comerciais. À luta fui.
Comecei pela área de serviço. Da cozinha segui para a sala. Um quarto e seu banheiro. Outro quarto e seu banheiro. Zelo para arrastar móveis e eletrodomésticos em busca daqueles espaços quase sempre ignorados. Limpava sobre os móveis, poeira não tinha vez, pus roupa pra lavar. A casa cheirava aquele olor tranquilizante da faxina.
Na saída do banheiro de meu quarto, dei-me de frente com a porta do guarda-roupas rabiscada a lápis. Frasco de borrifar cheio de Veja numa mão e bucha na outra, molhei a madeira para em não mais do que cinco passadas depois, a sujeira tivesse virado o mais puro branco que já existiu.
A ebriedade do cumprimento orgulhoso de deveres deu vez à sobriedade de significâncias únicas.
Então, meu mundo caiu. E comecei a chorar copiosamente.
Moramos neste apartamento há pouco mais de quatro anos. Mês e uns dias depois da mudança, meus filhos foram de mala e cuia recomeçar a vida nova num novo país, com novo idioma. Ficaram aqui dias e mais dias seguidos, para melhorar um mínimo que fosse a saudade imensurável e insuportável que eu enfrentaria pela frente.
Meu mais velho, prestes a completar 5 anos, aceitava o desafio com graça e maturidade. Minha menina, 2 anos recém-completados, alheia ao monstro da distância que se aproximava, fazia de tudo sua aquarela.
Foi num dia como outro qualquer que ela veio me chamar para mostrar a obra de arte. A lápis, rabiscou círculos pós-modernos na porta do guarda-roupas do quarto.
Sorri, beijei-a, entreguei um monte de folhas em branco para ela pintar, o que ela tomou com gosto e logo estava sentadinha na mesa da sala, papéis e muitos lápis à disposição, aperfeiçoando seus traços em movimento descoordenados e lindos.
Pelos cantos da casa não faltam imagens dos dois, sorrindo, fazendo pose e meninice. Não é questão de ausência de registro, portanto. É questão de valor afetivo, de memória que tem data, cheiro, cor, ocasião, relevância.
Limpar a porta do guarda-roupas do meu quarto é apagar os dias que antecederam a despedida. É fazer sumir a pequena Bela que não existe mais, que não mais desenha desconexo, mas agora soma, lê e escreve.
Vai-se, assim, a história contida do chamado pela mão para apresentar em primeira mão a obra digna de premiação mundial. Fica mais escondida a memória da pequena com quem não tenho o privilégio de conviver diariamente, emplacando lutas e sonhos juntos, como deveria ser, pai e filha e filhos, todos juntos numa só corrente, venha o que vier, aconteça o que acontecer.
Agora na passada de olhos no despertar, terá a imagem tirada no sofá da casa da avó, num dia em eu lá não estava, assim como hoje não estou, e, por pandemia e conta bancária, sabe-se lá quando estarei novamente.
Não há mais o sorriso inevitável da mancha que revivia a lembrança da minha menina ainda mais menina, de uma época em que corria pelos corredores do apartamento como seu que é, distribuindo vida e felicidade em sua voz rouca e espírito contestador.
E fui eu, numa distração atroz, contra o bom-senso da preservação da história, embebido da música alegre que animava a faxina, que afastei a minha filha para ainda mais longe.
Não era apenas uma mancha na porta do guarda-roupas do quarto do papai. Aquele era um sinal de um tempo mais humano, de quando o curso da vida fazia sentido porque tinha ela e ele do meu lado. Era um apelo de lembrança, “papai, estou aqui”. Era ela em alma que nunca sumiria.
Os rabiscos disformes eram um portal que trazia a minha filha de volta para o meu colo.
Minha pirulita.
Que por esses dias tombou descendo de snowboard a montanha nevada no Fim do Mundo, fazendo pausas para um mate.
E eu perdendo absolutamente tudo.
E agora terei que seguir sem a mancha na porta do armário.
Na TV da sala, sua mãozinha suada de dia quente de verão está marcada no canto interior direito da tela. É meu tesouro guardado, que, atento e vigilante, preservarei sem chance à distração de nova faxina completa.
Saudade é foda.
Crônica publicada pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #6, páginas 51-54.
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