A virada do Flamengo sobre o River Plate na final da Libertadores é clímax de um enredo construído para engrandecer a mitologia do futebol.
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Para se tornar o maior esporte do mundo, transcendendo o desporto, há de se tocar na mitologia. A construção do futebol como corrente maior do citius, altius, fortius se fez com personagens únicas e momentos sublimes.
Desde que largamos as patas da frente, pusemo-nos eretos e fomos, tempos mais tarde, capazes de compreender a importância transmissão de mensagens por desenho e escrita, que a contação de história é preservação da espécie. Desde então, perpetuam-se heróis em enredos intricados, deixando o ordinário para a vida que insiste em passar monótona, embora esteja longe de sê-la.
Quando infantes, traduzimos a palavra contada, a depender da geração – se mais recente, até vista em HD e múltiplos ângulos – no nosso ideal de jornada do herói. Os projetos de seres que um dia todos fomos, então, se viam em sonhos de glórias.
Projetamos finais de campeonatos em jogos suados, sendo acionados no apagar das luzes, quando as forças já não mais existiam, para emergir como herói da vez, tal qual um ser mitológico de força e superação, que aos 48 do segundo tempo, com um a menos, com a torcida adversária comemorando, contra a estatística, a lógica e o bom senso, estufaria as redes do arqueiro oposto, tomando a euforia para si, catalisada pelo gatilho de inferno ao céu pelo desalento que se sobrepunha a uma esperança cada vez menor. Partiríamos para o abraço, para o aconchego da pessoa amada, para a exaltação de quem, naquele breve e minúsculo cósmico tempo de fantasia – realidade, talvez, num multiverso particular – é o Zeus da ordem suprema.
Quando Gabriel Barbosa virou um jogo que caminhava para coroar o River Plate bicampeão consecutivo da América, apunhalou os argentinos em estocadas precisas, não apenas garantia a usurpação da glória e levaria novamente a sonhada taça 38 anos depois para casa. Mais do que isso, o enredo minuciosamente alinhavado pelos deuses do futebol cravava mais um capítulo sublime à mitologia de um esporte que se excede em jogo e vira conto, corrente filosófica, um je ne sais quoi que não se explica, se sente.
Daqui a anos, narrarão pais e mães emocionados, contando à cria da façanha de Gabigol, sucessor da casa Gol de artilheiros implacáveis, amplificando exageros, jurando bem jurado terem viajado a Lima e chorado no pé da Cordilheira, que atravessaram ajoelhados em agradecimento ao divino. Prometerão que um dia serão eles, os miúdos, a presenciarem feito similar no seu tempo, num Maracanã abarrotado dos seus. Até lá, um novo herói será forjado em roteiro reescrito para que a renovação retroalimente a mitologia do futebol.
Por certo, ser o seu time de coração o agente principal do momento amplifica a emoção. Aos outros, aos antis, aos alheios ao sentimento, resta resignarem-se de ver o sonho infantil de priscas eras feito fato sob o manto concorrente.
A proximidade amplifica, por sua vez, a reação em sinal invertido, quando se valem tais de argumentos detratores para macular o ardor e a euforia. Mais tarde, presos em seus pensamentos, vão restaurar a conexão e, em acordo consigo, tratarão de prever: “Um dia serei eu. Me aguardem”.
Gabriel Galo é escritor.
Crédito da foto: Rodrigo Coca / Conmebol
Artigo publicado na página 2 e no site do Correio da Bahia em 25 de novembro de 2019. Link AQUI!
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