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A vida num café

A vida num café

A gente subestima o poder de um cafezinho. Cresci com a certeza de que uma boa recepção se faz com o oferecer de um café novinho a ser passado, feito na hora. Tradição talvez herdada dos italianos, associação por analogia, totalmente, sem qualquer cunho histórico que a suporte. Conclusão pessoal baseada na indústria cafeicultora impulsionada por tantos italianos imigrantes que se estabeleceram no interior de São Paulo e pela dificuldade que é pedir um espresso depois do almoço numa cafeteria qualquer na Itália, façanha somente possível depois de cotoveladas, empurrões e gritaria. É a lei do mais forte. Está na cultura de lá, e, claro, na daqui.

Tem gente que trata o café como vinho. Aliás, vaticino aqui a profecia: em alguns anos, o status do café será igual ao do vinho. Os sinais estão todos aí. Métodos avançadíssimos e orgânicos de produção. Preocupações aos milhares com qualidade e pureza. Muitos e diferentes sabores. Baristas formados em Harvard. Água com gás antes para limpar o paladar. Tem até aquele café estranho com cocô de bicho que vale uma fortuna.

Tem tipo para espresso, para cafeteira italiana, para coador, para as máquinas de cápsulas, para aeropress…  Precisa de um diagrama para saber como usar de acordo com as regras da ABNT e da ABIC.

E eu apenas querendo tomar o meu café em paz.

Dá licença? Posso?

Pensando bem, o que diferencia o café do vinho em termos de status é o ar de interior, de vó, de gente simples que ronda o cafezinho de todo dia.

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Produzir, para mim, significa observar o mundo em movimento. Cada um tem o seu gatilho de criatividade; o meu é ver gente seguindo seus afazeres. É uma mensagem poderosa da nossa insignificância: ninguém sabe quem eu sou e a vida delas em nada muda por causa disso.

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Executivos e gentes de negócios apressados pedindo um cafezinho rápido, porque a vida corporativa é assim. Quão desinteressante é esta gente… Seguem seu caminho com suas rotinas sendo ditadas, com suas prioridades impostas por outrem.

Duas amigas entram no café da moda e sentam-se animadas para conversar sobre a vida e sobre o nada. Interesso-me pela conversa, não pelo conteúdo, mas pela dinâmica das amigas confidentes.

Uma mãe entra com o filho ainda com uniforme da escola, pede um pão-de-queijo para os dois, cappuccino, suco. Tem sorvete no canto, o menino insiste, ela cede. Prioridades misturadas: a pausa para um café, a alegria num sorvete do filho.

Um senhor de mais idade chega, pede um espresso, senta-se contemplativo, e nada mais diz. Olha, bebe; olha, bebe; acabou a bebida, levanta-se num cair de ombros resignado, e é engolido pela vida de fora.

O café é a bolha que para o tempo. A vida segue fervilhando do nosso lado, e parece podermos observá-la em câmera lenta.

Dois adolescentes passam felizes e param na mesa do lado, com suas bebidas base creme cheias de chantilly. O papo fica desproporcionalmente denso.

– Você é de direita ou de esquerda?

Nenhum dos dois sabem exatamente o que quer dizer aquilo.

– De direita, né? Nenhum governo de esquerda deu certo.

Quem é que não foi um propagador de clichês quando adolescente? Penso que muitos de nós não crescemos, continuamos o mesmo jovem repetidor de clichês, intempestivo e sem noção de causa e consequência, .

Uma criança, não mais do que 3 anos, brinca com seu brinquedo enquanto os pais vibram satisfeitos e aliviados pela chance do descanso. Faço uma careta, ela responde, assim ficamos alguns segundos, caretando e sorrindo e brincando. Os pais também sorriem, mas nada de careta, isso é coisa de criança.

Um engravatado passa falando alto no telefone, café pra viagem, reclamando de um relatório qualquer que não saiu. As conversas param por causa do barulho por meio segundo, e voltam ao seu normal em seguida.

Neste caso, o do gritador telefônico, o café não é pausa, é obrigação. Que gente desinteressante…

Prefiro os adolescentes, que agora perguntam curiosos quem gosta de quem na turma. Tudo voltou ao normal. Percebe-se pelo dilatado da pupila e outros sinais físicos, que, na verdade, um gosta do outro. Ele diz que quer ficar com uma amiga dela, ela se sente desconfortável, mas ele não nota, e segue sua em inabilidade de fazê-la declarar-se a ele, embora apenas a esteja afastando.

Como somos bestas quando novos.

Meu outro café, mais um, chega. Tem um coração na espuma de leite.

Fico olhando para a porta tentando adivinhar quem agora vai chegar, a compartilhar suas histórias no confessionário de uma xícara de café e uma companhia qualquer.

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