Manhã corria quando recebi notícias que meus filhos, felizes, pintavam em papel a bandeira da Argentina, onde moram. Faixa azul, faixa branca com sol, enfeitada com um boneco acenando ou o nome do país escrito, mais uma faixa azul. Estariam às 15 horas a postos, vestidos de alviceleste, prontos para torcer por nossos irmãos.
Esta cena, as fotos enviadas pelo aplicativo, recebidas sob lágrimas de saudade, me pôs a confabular, preparando-me para o extremo. O que será deste Argentina e Croácia? Como reagirei se nossos vizinhos forem mal? Afinal, ora, lá estariam meus filhos sofrendo pela derrota argentina, enquanto eu pularia de alegria na sala de casa? Ó, culpa, já chegando de antemão!
Hemos de confessar: temos um quê de inveja do futebol argentino. Pelos sofrimentos impingidos nas Libertadores, por terem muitas Copas América mais, por serem – acreditem, são – mais fanáticos e apaixonados pelo esporte, capazes de alçar Maradona, um anjo caído, um comum torto de humanidades, elevado à categoria de divino com direito a igreja própria. E, sádicos, têm Messi, o enviado extraterreno para mostrar que o que se praticava nos gramados de cá a lá até ali e acolá não passava de algo feito por juvenis e amadores.
Descontamos nossa pretensa raiva justificando-a na arrogância hermana. Convenhamos, haja paciência para aturar o sentimento de superioridade que é herdado de nascença do lado de lá da fronteira. Assim, não podemos nos furtar a saborear a derrota argentina como quase uma vitória brasileira. Iconoclastia é algo poderoso; quando direcionada à Argentina, então, é o nirvana. E confesso, imbuído de um tanto de culpa e um tanto de sorriso de canto de boca, ver a Argentina se estrepar me alegra.
Mas, rasteira do destino, lá está a cria, pintando de azul claro um pedaço de papel e gravando vídeos, vestidos de seleção rival, cantando “AR-GEN-TI-NA”. Sentimentos muito conflituosos tomam conta de mim.
Na tomada da câmera durante o hino, no protocolo pré-jogo, flagra-se um Messi de fisionomia abatida. Com aquela cara inconfundível de desmantelo desesperado, de “me tirem daqui que eu não aguento mais”. Quem viu, pensou o mesmo que eu: “lascou-se. Não tem jeito que dê jeito.”
Os próximos capítulos vieram mais sem jeito-que-não-havia do que o esperado. Pousou, pois, com requintes de crueldade. Depois de um primeiro tempo em que cada equipe trocou grandes chances perdidas, o segundo começou com o contestado goleiro Caballero pixotando em nível 02 esbofeteado, pede-pra-sair, fazendo a Croácia abrir o placar. O sádico em mim saudou o sádico em todos ao redor, que comemoraram sem pudor.
A Argentina se perdeu. Messi era um fantasma em campo.
O segundo gol croata veio num chutaço colocado de Modric. Os argentinos, fragmentados, partiram, como sói, para a tradicional pancadaria e intimidação. Foram premiados pela valentia fora de tom, pois num contra-ataque o terceiro veio, fácil, fácil. Goleada na Rússia.
Amigos, nessa hora, eu era a alegria em pessoa. Todo esse enredo é bonito demais para ser ignorado. Uma possível – e agora provável – eliminação na primeira fase de uma Copa do Mundo, depois de um vice, ousados!, aqui no Brasil, no nosso quintal. “Baixa a bola aí!”
Só que, veloz e rompante como um raio, a culpa se abateu: como estariam meus filhos? Ligo para vê-los. Nada. Sem retorno. Penso com uma pitada de desejo que o clima por lá esteja de tanto desalento que resolveram todos se desconectarem do mundo para sofrer em isolamento. Mais de meia hora se passa. Finalmente, toca o celular.
– Você ligou pra falar com os meninos durante o jogo?
– Sim!
– Ah, mas nem teria como falar. Eles foram pra escola. Aqui teve aula normal, nem viram o que aconteceu.
Qual o quê! Convoquei o Modric e o Otamendi em mim para chutar a culpa para o mais longe possível. Posso agora, ao fim, aproveitar, sem remorso, sem fração de senões, o prazer imenso de ver Maradona atônito nas tribunas, Sampaoli correndo de um lado para o outro sem saber o que fazer e Messi pensando com seus botões como será bom se esse sofrimento acabar logo de uma vez. Como amamos odiar a Argentina!
* Gabriel Galo é escritor.
Crônica publicada no Correio da Bahia em 21 de junho de 2016. Link AQUI!