Numa manhã de não muito frio, mas avisados que estávamos das temperaturas que seguramente cairiam ainda mais por seguir mais ao sul pelo Canal de Beagle, saímos de Ushuaia rumo a Estância Haberton com alguns casacos a mais. Assim fomos, prevenidos. À nossa frente, uma excursão programada para durar mais de 9 horas, com direito a visitar a pinguinera, local onde os pinguins se refugiam para procriar.
Por um lado, a necessidade de silêncio absoluto e nada de correria. Por outro, erámos 3: eu, meu filho de 5 anos e minha filha de 3 anos.
Pongamos no barco que nos levaria rompendo as águas geladas do canal. Muitos brasileiros, e logo meus meninos viraram a atração principal.
Preparado que eu estava, havia lanches na mochila, muitos papéis para desenharem, lápis de cor, água. Fraldas extras para minha filha – apesar do desfralde já realizado, imaginei que seria complicado achar um banheiro no meio dos ninhos dos pinguins. As simpáticas guias vão falando das peculiaridades dos vilarejos que víamos ao longe, dos exploradores que primeiro chegaram, “ali é Chile”, “já ali é Argentina”.
Pouco tempo adentro, o capitão reduz a velocidade: uma baleia jubarte está próxima. Os dois eram a cara da expectativa. Qual não seria outra reação, gritaram e festejaram subida e a não tão grande cauda nos saudando por sobre as águas. Prontamente se colocaram com seus papéis, depois dos tchaus à baleia, para desenhá-la tal.
Eles são muito companheiros, brincam muito juntos. Quase o tempo inteiro querem o mesmo lápis para pintar, e ai de um se encostar no papel do outro. A gente pinta junto os bichos típicos da região. Meu filho me conta que vê o castor nos passeios do Valle de Lobos, agora sua morada.
Todos se derretem com a candura dos dois. Mas não pense que assim são normalmente. Havia um medo enorme: conseguir segurar a ansiedade óbvia e animada em excesso de duas crianças que são reconhecidos na cidade como o terror de Ushuaia.
O tempo passa voando, nem sentimos quando chegamos à estância. Fomos direto para o almoço. Dali a pouco, pinguins!
Na chegada ao barco na volta do restaurante, desespero: esqueci o estojo de lápis de cor no restaurante. Alívio veio 2 minutos depois, pelas mãos de uma das atentas guias, que me trouxe o pequeno recipiente da salvação. Abracei-a agradecido.
Tomamos um barco-quase-bote rumo a um lado mais afastado da Estância. Uma vez mais, eles eram a cara da expectativa.
Tivemos muitas conversas durante a viagem. Preleção, junta aqui. Tem que fazer silêncio, falar baixinho, não pode correr, não pode tocar, vai assustar os pinguins, mas pode bater fotos, apontar pro papai. Assimilaram perfeitamente.
Já na costa onde o bote atracou, pinguins refestelavam-se preguiçosos sob o sol e sobre a praia cheia de pequenas pedras e de areia muito grossa. Minha filha aponta o dedinho, “olha papai, pinguins!”, faz cara de “que bonitinho!”. Meu filho pede a máquina fotográfica. Quer ele bater as fotos. Um vento forte e gelado confirmava a necessidade de mais agasalho, mas para aquelas gorduchas aves, era praticamente uma brisa de verão. Meus filhos querem chegar mais perto. Atendendo seus chamados, vamos de mãos dadas e nos sentamos na areia para eles verem os desengonçados bichos a cerca de um metro e meio de distância. Nossos anfitriões não parecem se importar, conquanto não sejam importunados.
As guias nos chamam: hora de ir aos ninhos!
Bela vai na frente, quer liderar o grupo. A extremamente simpática e paciente guia fica por perto observando, enquanto vou mais atrás tendo que puxar meu filho que a todo instante parava para tirar fotos e mais fotos.
“Vamos, filho! A gente tem que ir!”
Logo, um grande quase-descampado se mostra uma verdadeira fábrica de pinguins. Um caminho estreito, em alguns momentos a não mais do que 10 centímetros de distância dos ninhos, se delineava com marcações com pedras e cordas. Alguns dos elegantes animais em seus smokings naturais nos observam, desconfiados e imóveis. Outros entram e saem de seus buracos cavados para proteção dos ovos. Nos meus pequenos, é visível o desejo quase incontrolável que eles sentem de fazer um carinho num deles!
“Deixa, papai!” Seus olhinhos suplicam.
Um dos casais de pinguins me chama à atenção. Estão abraçados, como se admirando o pôr-do-sol, numa agradável tarde de céu aberto sem nuvens e com vento cortante para uns, um sopro morno de felicidade para eles. Em seu buraco, a cria que num átimo virará vida. Seus focinhos estão virados a quarenta e cinco graus com relação ao corpo, levemente inclinados para cima, altivos, imponentes. Eram a harmonia entre a serenidade e a plenitude. Cúmplices de uma jornada bem feita. Suas asas, em metamorfose, transformam-se agora em braços e mãos, que tocam suavemente o dorso da companhia, com a leveza do dizer “estou aqui”, os quadris encostados, enamorados. Sua linguagem corporal estática diz, em letras garrafais, mas com a calmaria que o lugar exige, “Com você vou até o fim do mundo.”
Voltamos para bote, depois para o barco maior, sempre com um olho puxando o meu filho que tudo queria registrar e outro na minha filha que comandava o ritmo da excursão.
Na volta, envoltos em seus alfarrábios colorantes, pintaram pinguins e afins. Cruzamos com mais duas baleias no canal, desta vez possivelmente mãe e filhote. Já não estão mais assim tão empolgados, boas 8 horas já se haviam corrido. Afugentando o sono, minha filha resolve correr pelo corredor do barco. Vai numa ponta, estou eu na outra, e ela vem correndo para se jogar nos meus braços. Uma, duas, dezenas de vezes, sempre sorrindo, lépida.
Como eu sinto falta da minha pimpolha.
Meu filho, na mesa, é a representação da maturidade. Austero, pinta e repinta outro desenho e mais um, me mostra orgulhoso sua obra.
Como eu sinto falta do meu zé.
Minha filha resolve fazer das outras mesas e pernas de todos ali a caverna de seu mais secreto esconderijo.
“Conta papai!”
E eu conto até dez. “Cadê a Bela?”
Lá saio eu procurando a minha fujona, que grita gigantesca alegria quando a encontro, “Acheeeei!” De novo, e vez mais.
Uma senhora – professora do maternal, ela me conta – vem elogiar a educação e obediência de meus meninos. “Mal sabe ela…”, pensa minha ex-mulher, incrédula quando contei da tranquilidade que foi toda a viagem.
Depois, pés grudados em terra firme após longas despedidas a todos, garantimos uma pipoca, um café para mim, biscoitos com bolo e suco para eles, para já dormirem no táxi em meu colo antes de chegarmos à cabana, minha residência provisória durante a semana. Eram, desta feita, o semblante do cansaço.
Com muito custo, consigo dar banho e trocar o pijama dos dois. Repouso-os na pequena cama de casal e ajeito o meu colchão de solteiro no chão para dormir. Penso que posso ter passado hora ou mais olhado os dois ali, estirados folgosos, ele coberto, ela, calorenta, se livrando de lençol e pança sobressalente quase de fora.
Percebo que a distância até ali parece a esquina de casa.
Que, por eles, vou até o fim do mundo.
***
Adorei…como sempre goste de ler o que você escreve. Um dia terei o prazer de ver essas crônicas em um livro. Assim poderei te abraçar de pertinho.
beijos
Quem sabe em breve não nasce o primeiro livro para o mundo?
Minha primeira visita ao Papo de Galo. Li “Até o fim do mundo” e pude matar um pouco da saudade dos meus netos. Bjs