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Bolinha de areia

Bolinha de areia

Criar um filho hoje em dia é estar sujeito ao escrutínio público. Tudo pode ou não pode. Tudo é bom e é ruim, ao mesmo tempo, sem dó nem piedade. Você acha que faz bem, mas tem gente observando achando que está fazendo mal, porque todo mundo quer é meter o bedelho na criação alheia para elevar-se ao posto de progenitor máximo.

Num mundo menos vigiado, as coisas aconteciam mais, digamos, naturalmente. Sem o desbarato das redes sociais, pais e mães e tios e afins faziam como lhes conviessem.

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O menino nasceu em Araçatuba. Vinha e voltava sempre até Barueri, onde morava. Eram muitas e incontáveis as viagens. O mundo do interior aguçava a mente da criança trazida para viver mais perto da capital, ainda mais em Alphaville, onde o povo não conhece mamona e nunca comeu fruta no pé. Na Bahia isso teria nome: menino amarelo. Ele, então, coitado!, foi levado a conviver com a menino-amarelice de vizinhos, colegas de escola e outros tantos.

A viagem é longa, estamos falando de bem mais de 6 horas de viagem, numa época de limite de velocidade a 80km/h e quando carro com ar-condicionado era um luxo só. O trajeto era muitas vezes feito com um tio, quando não com os pais. Esse negódi pregar peça nasce no sangue do interior, vem embutido no DNA, que nem gostar de churrasco e de sertanejo.

Algumas vezes (ô, grória!), o tio ao volante, ele avistava um caminhão de carga viva na estrada. E não era desses modernosos de hoje em dia, fechadinhos e que nem dá pra saber se tem bicho dentro ou não. Era aberto pro povo ver cabeça de cavalo pro lado de fora. E num mundo sem ar-condicionado, o cheiro vivo da carga excrementosa era insuportável.

A alegria se fazia quando o tio via o caminhão. Pra ele, claro.

– Ih, gente, carga viva ali na frente, ói. Melhor fechar os vidro tudo senão vai ficar um cheiro lazarento aqui dentro.

Toca criançada a fechar os vidros.

Quando já próximo, o tio sacana, então, esforçava-se para que peidasse sem barulho. E na subida do odor obviamente desagradável, ainda falava, com cara de nojo, que ator!:

– Nossa! Mas nem com os vidro fechado resolve! Ói esse cheiro… Vixe!

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Vou trazer para a primeira pessoa agora.

Meu pai era bicho pirracento. Alegria da vida era pirraçar os outros. Torcedores do Bahia, então, era a grória. E não podem acusá-lo de agir diferentemente em casa e fora, porque não era nem um pouco assim.

Belo dia, aproveitávamos a praia em Salvador eu e meu irmão. Crianças, devia eu ter 5 e meu irmão 3, ou coisa assim. Melhor que seja assim, porque se mais velho, a pecha de abestalhado se encaixa e pra tirar, haja trabalho.

Meu pai deitado numa cadeira de praia, minha mãe ao lado.

Isso, aposto, ele aprendeu com meu avô Leonan.

De repente, ouvimos ele nos chamar. E lá íamos os dois.

– Olha o que o papai fez pra vocês!

Em cada uma de suas mãos, bolinhas de areia, redondinhas. Criança é bicho besta, acha tudo legal. Aeeeeee!

– Mas tem um problema. Ela tá suja. Tem que ir lá no mar lavar.

– Paulo, não faça isso… Já virava para ele minha mãe, antecipando a desgraça.

Veja bem, me dê um desconto aí. A gente era criança e tal…

De lá saímos correndo para a água, tomando cuidando para não derrubar tão portentosa obra de arte, que só necessitava acabamento, uma lavadinha de leve.

Foi menino pôr a mão na água que a bolinha de areia se desmanchou por completo, virando um nada.

E então toca menino a voltar, chorando copiosamente, com apenas um punhado de areia molhada na mão, para deleite de meu pai, que vivia exatamente para esse tipo de situação.

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