O bafafá começou com aquela risada um tanto estranha, que nem na música Brain Damage, do Pink Floyd. Senti-me, pois, cada vez mais conectado à música. “The lunatics are in my head” canta o verso, eu pensava que comigo era mesmo assim, e a risada vinha, e eu sem saber pra onde ir, me escondia como se fugindo daquela invasiva intervenção, o que de nada adiantava, pois onde eu vou, minha cabeça vai junto.
Não tardou para a segunda voz chegar. Era diferente da primeira, mais contida, mais racional, por assim dizer. Mas não menos combativa, não senhor.
As coisas foram piorando aos poucos. Lembro-me bem da primeira vez em que as duas vozes entraram em conflito. Estava num restaurante, prestes a decidir pelo prato, garçom de caderneta na mão aguardando meu pedido, quando discussão tomou conta.
— Vai pedir isso mesmo? — Interveio a voz da razão, consciente dos meus movimentos gástricos.
— Pede logo a feijoada completa! — E a risada funesta da loucura ecoou na minha mente.
— Você quer depois que ele fique se remoendo por horas porque comeu demais?
— Nada faz mal se lhe faz feliz!
— Tá ali escrito, ó: para duas pessoas!
— Eu confio nele. Força guerreiro!
O garçom me observava impaciente no que, pensei, terem se passado segundos além do recomendável. Pedi.
— A feijoada, por favor.
A voz de gargalhada descontrolada riu de minha desgraça por 2 dias inteiros.
***
Era a senha para que a razão buscasse reforço. E a cada novo reforço que trazia, a loucura não secundava e se completava.
Dali a pouco, uma terceira voz se juntou em bando, a que carinhosamente chamei de Marina. Logo três eram quatro e, quando dei por mim, era mais gente discutindo que Câmara dos Deputados em dia de votação de impeachment.
A vida passou a ser um inferno. Qualquer ocasião que exigia mínima decisão era objeto de debates infindáveis. Passei a me ausentar de aparições sociais, presenciais ou virtuais, até entender como controlar a gritaria.
***
Primeiro, juntei as lideranças para uma conversa reservada:
— Juntei vocês aqui hoje porque está claro que do jeito que está não dá pra ficar.
— Não mesmo! — todos concordaram.
— Então, a partir de agora, toda decisão será feita com votação. Cada representante poderá declarar os seus porquês e eu, então, deliberarei sobre o que for exposto e chegarei à decisão.
O que seria em teoria simples, virou o rame-rame de julgamentos no STF. A boa intenção caiu por terra depois de dois dias dormindo sobre a cama sem lençol até que chegasse o veredito do jogo branco.
Era necessário, pois, aperfeiçoar o sistema.
***
Várias foram as formas.
Tentou-se voto fechado por grupo aliado.
Tentou-se democracia direta com eleições gerais, mas os grupos recrutavam cada vez mais gentes para seus rebanhos, piorando o processo. Houve até princípio de motim, com certo grupo falsificando assinaturas de vozes que nunca existiram.
Tive, por fim, que encampar endurecimento das relações.
— Chega! Assim não dá mais. A partir de agora a banda toca com processo bem resolvido. E as regras são as seguintes: eu vou apresentar as opções possíveis. Então, cada grupo tem 1 segundo para apresentar seu voto. E a opção que tiver mais votos será a escolhida. Percebam: é ditadura na forma, mas é expressão livre de democracia.
— E se não der tempo de colocar o voto?
— Vai contar como abstenção.
— Mas um segundo não é tempo suficiente para resolver temas complexos! — A voz da razão pontuava, pois, com razão.
— Tempos dramáticos exigem medidas dramáticas. Desculpem, mas não sou eu que faço as regras.
— Como assim? Foi literalmente você que as fez!
— Que seja. Sessão encerrada.
À tarde, fiz o teste: café ou chá? Num átimo, tinha o pó de café em mãos. Jantar? Pizza! Era pá-pum e a vida era quase normal.
Mas o delirante gargalhar não se satisfez. Diante da assembleia de vozes, suas inconsequências eram derrubadas. Sedento por destaque, arquitetou motim e, um a um, formou maioria.
***
Recebi com estranhamento o comunicado para reunião na madrugada. As vozes líderes me convocavam para uma sessão extraordinária. Assenti.
À mesa, a dezena de gentes me receberam com saudações pouco cordiais. A razão deu a largada.
— Você foi convocado aqui hoje porque temos um comunicado a fazer. Perceba, não é uma questão de negociação. Democraticamente, nos reunimos a portas fechadas e chegamos à conclusão definitiva e irrevogável que você será expurgado de suas funções como gestor máximo da sua sorte. Este documento aqui, assinado por todos nós e protocolado em cartório, torna efetiva imediatamente a decisão.
— Mas…
— Não tem mais nem meio mais. A partir de agora, você não é mais você. É a gente aqui.
— E…
— Não tem a, nem e, nem i, nem o, nem u. É o que é. E você pode escolher em ser destituído por bem ou por mal.
— Tem diferença?
— Nenhuma. Só vai se arrastar mais. Entregue-se!
Visto que jeito não tinha, arrumei cantinho do inconsciente, onde adormeci. Nem sei o que se faz lá fora. Tenho ouvido a gargalhada delirante com mais força. Posso apenas confabular o que tem sido de meu corpo, vagando sem alma a esmo.
Eventualmente, reunirei forças para retomar meu lugar de direito. Mas para isso, terei que persuadir a razão à minha causa.
— Razão! Razão!
O guarda veio à portinhola.
— Nem adianta perder sua voz. A razão foi guilhotinada logo depois do golpe.
— Golpe?
— Golpe? Quem falou de golpe? — e saiu rindo freneticamente sua gargalhada descontrolada.
***
Conto publicado pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #6, páginas 44-46.
Apoie!
Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a nossa newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade. Ah! E meus livros estão na Amazon, esperando seu Kindle pra ser baixado.
Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.