A rotina na Velha Cidade da Bahia era a comum para o meio da década de 90. Eu, mancebo, era levantado cedo pela mãe, tomava café correndo, como que não querendo, desejando apenas mais 5 minutos de cama. Vestia o uniforme da escola como que sem porquê, e logo embarcávamos no Fusca 73, sem ar-condicionado nem assoalho, coisas que hoje entendo como primordiais para o bom funcionamento de um automóvel. Dobrávamos a primeira esquina para nos vermos defronte a sinaleira. Nela, dois arautos da comercialização da notícia a disputar as moedas e a atenção de quem seguia, como que sem noção. A noção era, pois não, o que se grafava nas prensas do papel dobrado, entregues pelos meninos sem camisa e com colete, bradando a plenos pulmões: “A Tardeeeee!” “Correiooooo!”
Afeiçoava-me pelos danados semafóricos, trocando dignidade pelo quinhão do sustento como-pode. Ainda não havia chegado a onda dos malabaristas, mas flaneleiros dispostos a passar pano para limpar o vidro, sujando-o ainda mais, era coisa que fazia monta – evoluíram, pois por hoje, ao esguicho de água com produto e bastão-limpador que de um lado faz tchan e do outro faz tchum, um assombro.
E a gente ali cozinhando no Fusca sem ar-condicionado e sem assoalho, mas com a moeda para garantir a palavra do dia a quem fosse mais simpático, em critério absolutamente discricionário do velho. Certa vez brigaram os concorrentes, e pronto para dar o sermão como se algo valesse, recusou-se meu pai a favorecer tal ou qual, seguindo senhor de si, enquanto cada um já serelepeava em outra janela, “Correiooooo”, “A Tardeeeee!”
Era a primeira hora do dia um festival de sentidos para o guri que não tinha noção o que significava aquilo. A relevância da notícia, o trabalho de publicação, a distribuição, a alimentação factual de uma gente inteira – nós apenas uns mais.
Com o passar do tempo, as recordações de mais para trás migraram de imagéticas para sonoras ou olfativas. Reconstrói-se a memória no barulho do pino da panela de pressão a apitar feijão novo.
A minha carreira rumou por outros passeios e outras querências, mas se desarranjou para voltar às letras. E com a idade avançando, estes conceitos da boa apuração foram mais bem assimilados. Apesar de não ser jornalista de formação, inteirava-me dos comos e dos porquês, curioso. Acompanhei com atenção a substituição da tecnologia e da forma de se ver notícia, o que derrubou muitos dos grandes meios. Deliciava-se com as reportagens especiais e com as colunas dos bambas. Cony, Ruy Castro, Millôr, Prata pai, Veríssimo filho… Herança melhor é a que se reverte em cultura, digo a mim mesmo, fruto que sou dos sem-posses.
E na esteira da mudança geracional e tecnológica, Darwin daria as cartas na batalha midiática a quem soubesse ler o que diabos estava acontecendo. O salseiro de adaptação apresentou grande desafio: como conciliar as notícias no instante para atrair a massa, o apuro fino de reportagens especiais, corpo de colunistas afiado e coeso e as novas tecnologias? Neste desentendimento, tantos ficaram pelo caminho, redações encolheram, o bolso encurtou e a nova ordem surgiu – o impresso está (nati) morto, viva aos portais!
Alguns, no entanto, aproveitaram a onda e, mais que se reinventar, tornaram-se referência. E, levando o rumo da prosa de volta à Bahia, ninguém soube fazer deste limão uma limonada com tanta maestria quanto o Correio. Isto não é achismo. São dezenas de prêmios nacionais e internacionais para corroborar. Para quem tem a oportunidade de navegar pelos bastidores, há a segurança de que se trata de algo mais do que trabalho. É um carinho enorme de todos que dividem a redação, presencial ou remotamente. Gente fina, elegante e, sobretudo, sincera. Caso de sucesso nacional, pois, pois.
Vezeiro, dou meus pitacos neste espaço de que, há cerca de dois anos, faço parte. Como escritor que mudou de carreira depois de velho, não poderia estar em melhor companhia. Mais do que tudo, sinto um orgulho tremendo de andar junto com quem resiste aos mantras éticos do bom jornalismo. Vanguarda é trabalho diário de resiliência.
Pois no agora transporto-me para o antanho, para olhar de fora o menino dentro do Fusquinha sem ar-condicionado nem assoalho. Que olhava besta para fora procurando absorver o que pudesse. Que ouvia o vendedor na sinaleira, talvez tão inconsciente da importância do que fazia – função era ganhar o pão de cada dia – quanto eu. Segue-se: o de comércio grita, “Correiooooo!”, eu olho orgulhoso a cena por cima, Deus da reconstrução cenográfica, enquanto o eu-moleque cata as moedas do console torcendo para que meu pai fosse com a cara do sujeito e deixasse o quase-novo (pois de ontem) invadir nossos mundos.
Parabéns, Correio, pelos seus 40 anos.
* Gabriel Galo é escritor e um entusiasta do jornalismo com J maiúsculo.
Texto publicado dia 17 de janeiro de 2019 no site do Correio. Link aqui!
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