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“Não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: estamos sempre indo pra casa.”
Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica
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Qual o peso das suas lembranças? Qual o valor das suas memórias? Quão doloridas são aquelas que você tanto lutou para que fossem esquecidas?
Não, nem tudo são flores, nem tudo cheira bem, nem tudo vem com uma cama quente e a tranquilidade de uma vida com bons prognósticos. Ainda assim, aprendi uma coisa fundamental: é impossível apagarmos nossa história.
Os gatilhos emocionais acontecessem hoje com muito mais facilidade do que antes. Uma música brilha passagens que eu não imaginava que tivessem ocorrido. Uma frase. Uma imagem. Um tato. Qualquer coisa.
Do fundo do corredor vem correndo a criança que me habita, pedindo passagem, pedindo para não ser esquecida. Lá do fundo vem o eu-de-antes aprendendo a andar, crescendo a cada passo, até o adolescente a partir de onde as memórias estão mais claras e acessíveis. Duranto o trajeto, ele acena para mim com a certeza infantil e ingênua, coberta de verdade e de razão, de que eu não seria quem sou hoje sem ele.
Como negar? Como negar a importância de cada eu, com suas idiossincrasias e incongruências?
Na velocidade do possível, vou desempacotando caixas de reminiscências. Caixas de Pandora, muitas. No plural.
Qual o tamanho dos seus traumas?
Com o tempo, separamos o bom e enviamos o ruim para a lixeira. É possível afirmar que estes cuidadosamente renegados itens não formaram o que somos?
Afinal, o que somos senão fruto de nós mesmos, de nossas experiências, de nossas vidas, erros e acertos?
E como podemos entender para onde vamos se não sabemos de onde viemos?
Não se vai a lugar nenhum. O sentido da vida não é uma linha de chegada, mas a jornada por ela.
Cada item conta.
Alguns argumentam que são as adversidades que nos moldam mais fortemente. Há uma problemática deste pensamento, embora factual, que causa um conflito psicológico primordial: é possível aceitar que aquilo que mais nos machuca é também aquilo que mais nos define? Como podemos admitir relevância maior àquilo que peleamos tão bravamente para esquecer?
Decidi, por fim, abraçar a criança do eu-de-antes no fim do corredor. Ela me segura pelas mãos, caminha comigo, carinhosamente. Não há palavras, apenas portas, em ambos os lados. Atravessando as portas, dentro de salas sem mobília e pouca luz, as caixas. Ela senta comigo no chão, pernas cruzadas, sorriso no rosto. Sinaliza que vai estar comigo em cada passo, não importando o que pular de cada uma daquelas caixas.
Haverá riso, haverá choro, haverá raiva, haverá dor, haverá ressentimento, haverá gratidão, haverá o que houver. Haverá tudo, em muito, em tanto, em profusão.
Haverá muitos eus perdidos por aí, no que serei apenas um fragmento de meu eu-do-futuro. Sou trânsito, sou metafísica, sou um segundo perdido no tempo. Com o tempo, na linha da história, o eu-de-agora será também o eu-de-antes. Vou unir-me aos 35 na mesma farofa do bebê gorducho, da criança nerd, do adolescente vara-pau, do universitário arrogante. Todos serão uma fração de mim.
A criança que me habita ainda tem mais direitos que o eu-de-agora: ela veio antes. Questão de senioridade, por assim dizer.
Na sala da porta aberta no corredor da vida, sentado no chão, com o eu-de-antes ao meu lado, abro uma caixa. Ele segura a minha mão. Renitente, vai estar sempre comigo.
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Feliz Dia das Crianças, meu povo.
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