Uma final da Libertadores entre Palmeiras e Santos serve de escavadeira para desenterrar, na memória do nosso fútil-bol, um grande conflito entre duas escolas de jogar bola.
O regresso ocorre direto do túnel do tempo das memórias que insistem em falhar – qual o nome mesmo daquele ponta do Vitória do campeonato baiano de 1964, quando o clube venceu a disputa sem nem sair nota na imprensa. Não faz ideia? Eu fazia, mas agora estou na mesma, vendo as sinapses cerebrais emitirem menos faíscas, estabelecendo conexões morosas, como se cansadas da biblioteca de esqueçanças.
Retomo assento no velho radinho de pilha, plugado nalguma decisão do Rio-São Paulo, ou numa fase decisiva do Paulista.
O Palmeiras nos ofereceu não apenas uma, mas duas academias, capazes de nos fazer louvar a deuses da bola, sendo o mais representativo deles, Ademir da Guia.
Já o Santos atraía para seus grandes times a admiração de todo o planeta. Difícil organizar agenda para atender pedidos de países os mais distantes, de fútil-bol frágil, mas dotados de uma torcida ávida pela experiência estética de apreciar Pelé e seus companheiros.
Coube ao destino – arranjos de tempos mais simples e vaga única para o campeão – que o Santos de Pelé e o Palmeiras de Ademir da Guia, e mais companhia ilimitada em possiblidades da bola, não se trombassem nas Libertadores dos anos 1960, quando ambos acumulavam troféus – mais o alvinegro que o alviverde.
A final desta Libertadores assume, assim, ares de uma super-decisão além da história pois reunirá em um só confronto dois dos clubes aos quais devemos a beleza do ludopédio.
Santos x Palmeiras reativa em nosso imaginário o duelo Pelé x Ademir da Guia, 10 + 10 somando infinito, a explosão da natureza representada por Pelé contra a cadência de Ademir.
Enquanto Pelé rompia contra a defesa adversária, como um vodum da bola, o adversário recuava, temeroso. No quando agora, Marinho, sem a 10, encarna o papel rompedor maior-de-todos, maturando adiante na idade para tornar-se talvez no melhor jogador em atividade no Brasil.
Já Ademir rompia o conceito de tempo, ele mesmo dando o ritmo do jogo, trazendo para ele a função do relógio, um Cronos titã e Deus.
Nesta final, não teremos, nem tomando um alucinógeno, algo parecido com os duelos de Santos de Pelé x Palmeiras de Santos.
Na imaginação que tudo aceita, vislumbro a final de antanho num Maracanã lotado, mesmo enredo de agora, eliminado os dois argentinos, River e Boca, nas semifinais. Unem-se os dois finalistas, pois nem sempre os gardelitos foram gentis, alteram-se os nomes, sem grifo no manto, liso de tudo, exceto número e escudo.
Com trocação escancarada, boxéu amador que luta por prazer e por esperança, emendam as equipas um gol atrás do outro, sempre definindo empates que prolongam o duelo à eternidade.
De soslaio, pegando carona no sonho do empate interminável, Chulapa faz o dele no apagar das luzes, e em vez de choro, o garoto do Sarriá explode em alegria do tetra em solo espanhol. É proibido proibir.
Deste sonho não quero despertar. Pra quê?
Aí, outro gol. Pelérinho tabelou com Kaiotinho e deixou Pepeldo na cara pra marcar. Bonito. E o Palmeiras já empatou, balaço de fora do Divino.
Pois aviso: se me acordarem, levanto de base montada, boxéu de queixo exposto, se plante que não me responsabilizo pela ira provocada pelo sonho interrompido. Me deixe.
Crônica de Paulo Leandro e Gabriel Galo sobre a final da Libertadores para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 72 a 73.

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