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Dia 1: A urna

Mucugê, 25 de janeiro de 2017

Ela está na minha frente. Imóvel. Não tem olhos, mas sinto que me vigia. Não tem boca, mas tapo os ouvidos do tanto que grita. Não mais do que 50cm de altura, gordinha. Poderia ser um vaso de plantas numa sala, encaixaria. Enche d’água, coloca umas flores de talo longo, que belo enfeite. Esta seria a imagem de uma urna, certo?

Não nesse caso.

A urna reservada para meu pai é uma caixa branca, quadrada, sem muitos atrativos. Dessas de guardar joias no guarda-roupa, ou uma caixa de chá, talvez. Absolutamente comum.

A ironia dentro da ironia. É engraçado que o casebre onde ele agora se encontra é o oposto de sua vida: sem graça, sem cores. Mas é, também, uma afronta ao modelo tradicional de urna, e brinca com o costume opondo-lhe em quase tudo.

Faz-se a luz. Agora sim.

Ali dentro, as cinzas de meu pai.

Me assusto com o tamanho diminuto. No caso dele, ao pó retornou. Era um homem grande, cerca de 120kg em parcos 1,73m de altura. Estivesse ele magro, a urna seria menor? Teria desconto?

E o que leva a crer que aquelas cinzas são mesmo as de meu pai? É uma relação de extrema confiança, esta. Como confiar que houve uma preservação de evidências apropriada? Não existe DNA, exame comprobatório, nada.

– Depois de intensa análise, um laboratório chegou à conclusão de que isto não passa de cinza de Hollywood. Exijo reparação!

Não acontece, claro. Nem:

– Bom dia, senhor moço da funerária. Vim buscar as cinzas de meu pai.

– Claro, fique à vontade. Do que está exposto, pode escolher qualquer uma.

Nas prateleiras, aquela que convier ao gosto do freguês.

– Todas são de meu pai?

– Faz diferença?

Céticos não podem ser donos de nada nessa indústria.

Se são os restos mortais ou brasa de um churrasco que varou a noite, leigo que sou, digo que confio. Melhor assim.

Não há alternativa, nem para a confiança, nem para a morte.

Sinto um certo receio de manuseá-la. É meu pai ali, afinal de contas. Será que tenho que pedir permissão para carregá-lo de um lado a outro? Seria louco conversar com ele naquele estado?

– E aí, meu pai? Putz, você está só o pó, hein?

E cairíamos numa gargalhada.

O propósito desta viagem se baseia neste ínfimo vasilhame. Que ironia: passamos a vida toda tentando fazer mais de nós mesmos, e, no fim, somos apenas algo que caberia num tupperware. Do ponto de vista físico, naturalmente.

– Decifra-me ou te devoro, ouço a urna me dizer.

Li num pequeno texto que um dos maiores medos do luto é o de não sentir mais dor. Porque, fatalmente, a dor passa, e é apavorante percebermos que ela pode, assim, ir embora. Associamos dor à saudade. Não podemos nos permitir não sentir dor da saudade por alguém que tanto amamos.

Já assimilei que a dor nunca passará. O que mudará será a reação a ela, quão paralisante ela pode ser.

– Ora, bolas. Se você nada representa agora no mundo físico, a não ser este pote, e se a verdadeira herança está no que não se toca, de nada valem também estas cinzas. Sua existência deve perdurar na memória, onde pode ser guardada, editada e melhorada. Acessar-lhe é possível em qualquer esfera a qualquer momento. Portanto, pede-me para que me desfaça de você, para que eu siga sem o seu peso, apenas com a leveza das lembranças.

Ela sorri para mim.

Eu choro copiosamente.

Nos abraçamos uma última vez.

Vai ficar tudo bem.

Seria melhor com você, mas o que isso muda?

– Te amo para sempre, dizemos simultaneamente.

***

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