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Dia 9: Odoyá!

Dia 9: Odoyá!

Rio Vermelho, Salvador, Bahia, Yemanjá, oferenda, mar

Salvador, 2 de fevereiro de 2017

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“Dia 2 de fevereiro é dia de festa no mar”

Dorival Caymmi

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De câmera na mão e um monte de ideias na cabeça, cheguei ao Rio Vermelho às 5 horas da manhã para pegar a alvorada e, quem sabe, Yemanjá pelo rabo e pedir diretamente à minha mãe aquele auxílio. Ia como não iniciado, dessas inglórias para desprevenidos, como eu-que-ia.

Tinha de tudo um pouco. Rosa de quatro reais, depois de quatro por dez, e na xepa do que ainda não ofertado, liquidavam por um real, ou por quanto tivesse de moeda no bolso da frente. Algumas tinturadas no azul, no agrado da cor da Mãe, que haveria de considerar com mais afeto pelo toque de carinho.

No caminho, um axé de 5, ou se freguês caísse nas graças do apaziguador da alma, até de graça. Nessa onda, um negão de quase 2 metros de altura, depois de me analisar desejoso de cima a baixo, já vai me puxando pela mão, oferecendo-se em terceiras intenções e um axé de cortesia. Rápido como um gato-que-sou, sassariquei um aú, remolejando na ginga, já armando uma bênção e uma ponteira e me desvencilhei caindo no centro de uma roda de capoeira. Interpelado na base do tradicional – coé de merma? – e secundado na explicação do axé evitado, na sobrancelha em riste percebi que lutador se armava de meias-luas, de compasso e de frente, no que me alinhei numa cocorinha, numa negativa, numa queixada e numa rasteira, no que o oponente beijou o solo e saí sequenciando mais e novos aús fugindo da horda que não mais cantava paranauê, mas “pega essa disgraça!”

No alto da pulada da mureta, caí já de dentro de um barquinho que levava a gente para o meio de mar, para garantir que a rosa não voltasse e a pedida fosse atendida.

– Porréisso, mô pai? 10 real, na moral, vá!

Retruquei adicionando a ginga coisada de há pouco. Era muita afronta provocada, e no vocativo do féladaputa gritado, pulei ao mar no modo salve-se-quem-puder, lançando a rosa à Dona Janaína e implorando ajuda.

Tendo remado à areia, cheirando a esgoto, urina e alfazema, caminhei pelas pedras rezando para qualquer entidade que me afastasse os males – valei-me, minha mãe Nossa Senhora da micose! – no que fui reconhecido por um gringo que ao longe acompanhava a saga, e gritou, o sacana, “é ele!”, num português carregado no sotaque, secundado pela companheirada do estrangeiro, brancos vestidos de branco e empunhando rosas brancas. No coro, fizeram chegar aos ouvidos de sinhá cunhã vizinha da roda lascada, que de lá de cima gritou:

– É a porra!

No recomeço do furdunço, batuque batucando com baianas e baianos girando e cantando, povo orando na sua cerimônia privada e eu fugindo escada acima, me escondendo na fila de-mais-de-dia da oferenda do cortejo oficial, apelando para a covardia pela sobrevivência. Uma senhora do alto de seus 50 anos, de crucifixo pendurado no pescoço grita de lá:

– Olhe a fila, seu moço!

E os de igreja, de culto, de terreiro, de centro, e de mais tantos e de crença nenhuma, na reclamação, porque se não tem fé tem paciência, mas há limite quando senhor zé ninguém invade o espaço na espera de horas a fio.

Perseguido agora pelos de meia idade, todos brancos vestidos de branco empunhando rosas agora de cores variadas – no que me raciocino que os de prática e de fé em hora reservada honram a honra e a homenagem à das águas; ali no meio de geral é tudo sem importância – me perco na multidão no Largo da Mariquita, já afastado, finalmente, da quizumba. Sento-me num bar e vejo que queria estar, naquele instante, no refúgio acalentado e chamegado dos braços de uma roxa morena. Ai d’eu, sodade.

Ao fundo, de longe, vejo Yemanjá sentada numa pedra, penteando seus longos cabelos, se olhando num espelhinho, toda cheirosa de alfazema, rindo-se do cacete armado e do diabo a quatro feito apenas para ela e em seu nome.

– Odoyá, minha Mãe!

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