O estádio do Palmeiras fica muito perto de onde moro. A pé são não mais do que 45 minutos de distância. Saber do Vitória jogando na bela e moderna arena, com a benesse da proximidade, é sempre motivo de alegria. Alegria instantaneamente interrompida pelo histórico de derrotas do rubro-negro na capital paulista. Mas, bicho incutido que é torcedor, fica sempre aquele desejo de reviver os 7 a 2 da Copa do Brasil de 2003. Exceção que alimenta a esperança da torcida.
Quebramos à direita para invadir a Rua Palestra Itália vestida de verde. Meu irmão, palmeirense transformado pela coincidência de nossa chegada a São Paulo e o auge da Parmalat, me fazia companhia, vestido de Palestra. Ávido pela companhia do meu irmão, pai recente que largou mulher e pequeno pelo curto período de tempo para prestigiar o alviverde imponente, e cuidadoso do meu bolso – a torcida visitante paga a entrada de um carro zero para estar no luxuoso estádio –, decidi acompanhá-lo nonde a maioria gritava porco.
Sim, estava em território inimigo.
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O clima de estádio começa muito antes da bola rolar. Antes até do dia do jogo: começa quando você confirma a compra do ingresso com antecedência. No dia tal, a explosão. A torcida chegando, todos invariavelmente felizes, com expectativa em alta. A rua onde nosso portão fica está fechada para carros, para ser ocupada por vendedores de bonés, camisetas, cervejas, sanduíches de pernil, cavalinho do Fantástico, toucas, cachecol, e o que mais der na telha daqueles que precisam garantir o ganha-pão. Todos falam alto. Euforia em cada gesto. Gritam! Estão roucos antes mesmo do apito. É uma terapia: extravasam, liberam, jogam tudo pro ar.
Muitas famílias ziguezagueiam. Pais com filhos e filhas nos ombros, todos vestidos a caráter. Bebês dormem no meio da algazarra. Fico sonhando que em breve será meu irmão a levar o Murilo para lá, e quero estar junto, acompanhando meu sobrinho na sua transformação.
O horário das 11 horas da manhã é particularmente especial para quem paga o ingresso. Acabando o jogo, sobra tempo para voltar para a macarronada de domingo e ainda pegar o futebol das 16 horas na Globo. Para alguns, a desfaçatez de entornar uma cerveja às 10:30 da manhã é dessas pequenas transgressões que alegram a criança que existe em cada um.
“E dá-lhe, dá-lhe porco!”
Somos sugados pela grande estrutura de metal que encobre o antigo Parque Antártica.
Nossos lugares ficam exatamente embaixo da torcida visitante. Os rubro-negros baianos sequer podem ser vistos, afastados que ficam da beirada por barreira de seguranças e uma cerca de acrílico que serve para o propósito de proteger os de fora da fúria dos vizinhos anfitriões e, mais importante, para abafar o grito e a vibração alheios.
Começa o jogo e o Palmeiras quase larga na frente, nem 20 segundos de jogo à vera.
Dali 9 minutos, um milagre.
Num contra-ataque, Uillian Correa, bravo volante do Vitória, acerta um tirambaço fora do alcance de Fernando Prass. Gol. Estamos na frente.
PUTA QUE O PARIU O AZAR.
Quero gritar, gritar, e gritar.
Ouve-se o “Negô!” e o “Vi-tó-ria la-la-iá!” ecoando pelo Parque, rompendo o chiqueirinho de acrílico onde estavam represados.
BORA, VITÓRIA!
Reconheço meu espaço, no entanto. Contenho-me o quanto posso. Aperto a coxa do meu irmão com força. Seu braço. Chego a morder o coitado. Em cada apertada, um grito de gol interrompido. Todos no entorno estão revoltados e eu assinto numa concordância fingida. Se prestassem atenção, veriam um sorriso maledicente.
Toca o meu telefone. Era meu filho, chamando pelo Whatsapp diretamente de Ushuaia, na Patagônia argentina. Mostro-lhe onde estou. Ele pergunta se estou num jogo do Vitória. Digo que sim e que estamos ganhando! Ele comemora.
Mas aí… Bem, aí que a zaga baiana, que já não precisa de contribuição externa para entregar a rapadura, contou com o desonroso auxílio do senhor seu juiz. E o bolo desandou.
No intervalo, consigo falar com 2 queridos amigos palmeirenses que estão no estádio com seus filhos. Nos vemos ali ao longe, trocamos abraços distantes pelas ondas do celular.
No segundo tempo o Vitória aperta, mas, com a eficácia irritante dos ditos times grandes, o Palmeiras marca mais dois, para alegria de tantos, quase todos, exceto aqueles ali em cima, que já não mais cantavam nem vibravam.
Apesar de eu ser um intruso, era uma experiência e tanto. Um camarada de coque no cabelo não para de falar por 10 segundos sequer. Cada um reclama de quem não gosta: Egídio, Tchê Tchê, Borja, Roger Guedes, todos têm o seu alvo preferido. Todos querem Moisés de volta. Alguns mostram o dedo do meio para o lado visitante, mas ninguém pode se ver. O propósito é só mostrar coragem. Um careca de cabeça raspada usa uma camiseta de torcida uniformizada, numa falha da fiscalização na entrada, mas que recusou entrada de um boné personalizado de uma família palmeirense de Osasco na minha frente.
Uma confluência de tantos iguais em paixão pelo seu clube.
Na saída, encontro com os amigos palmeirenses que cumprimentei ao longe das arquibancadas. Nos abraçamos fraternalmente, o clima é de contentamento e descontração. Fazemos graça. Nos despedimos marcando a próxima.
Compramos uma Heineken, que é boa e verde, e seguimos para buscar um Uber para nos levar de volta para o meu apartamento.
Sinto um carinho profundo por aqueles pais e seus filhos, compartilhando algo tão puro, tão arcaico, tão irracional, que é ser um torcedor de futebol. O companheirismo escancarado.
Mais tarde, meu filho manda um áudio no celular. Pede para eu avisá-lo quando o Vitória for jogar de novo, para ele acompanhar. Num vídeo, manda um “Bora, Vitória!”, feliz da vida.
E fico doido de vontade de tê-lo comigo, ainda mais vontade do que a já normal e angustiante dor que carrego todos os dias por vê-lo distante, levá-lo ao Barradão ou a outro campo como visitante e podermos cantar “Vi-tó-ria la-la-iá” e gritar “Negô!” juntos.
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