Na frente da casa simples de dona Ruth cresceu portentosa e fragosa uma amendoeira. Dessas de raízes sobressalentes, que danificam a calçada de pedras portuguesas. Dessas cujo galho se espreguiça na manhã que nasce rompendo a janela de vidro do andar de cima do sobrado. Ideia de há quanto tempo a amendoeira ali está dona Ruth não faz, embora recorde que quando mudaram seus pais com ela ainda criança, nos idos de já-há-muito-tempo-que-não-lembro, morada ali já tenha feito.
No fim da rua, os 80 anos se aproximavam em ritmo cada vez mais lento. Os anos passam na velocidade da vitalidade de cada um.
Foi na amendoeira que papai fez balanço para ela suingar de fundo à frente, de pernas dobradas com corpo contraído a pernas esticadas com corpo quase deitado. Pique-esconde com a amendoeira de porto seguro. A utilidade da árvore foi mudando com o tempo. Aos 15 anos teve seu primeiro beijo roubado debaixo de sua copa, costas tocando o tronco encascado e saliva. Assustada e envergonhada, correu para dentro de casa. Cruzou com seu pai, que certamente a assistia de dentro, aumentando sua vergonha. Descobriu ali ser seu pai um progressista, por assim dizer, pois ele apenas sorriu enquanto ela subia as escadas o mais rápido que pôde para se esconder por 2 dias inteiros em seu quarto.
Quando se casou, foi na amendoeira que tirou as fotos vestida de noiva, hoje num porta-retratos em cima do criado-mudo em seu quarto. Quando papai morreu, mudou-se com marido e filho para a casa a cuidar da mãe, que pouco depois também partiu. Viu-se reiniciando o ciclo na casinha. Desta vez seu filho pendulava no balanço, para depois ele escrever as iniciais dele e da primeira namorada naquele mesmo tronco que as costas de sua mãe beijaram surpresas. Era a história que se refazia.
A truculência do tempo levou tantos dos seus. Amigos, parentes, marido. O filho, já ele agora com filho e neto, morava em outra cidade. No sobrado simples de uma vida, apenas ela e a amendoeira.
Diariamente, vassoura numa mão, pá de lixo na outra, Dona Ruth abre o portão e começa a varrer do chão as folhas da amendoeira. As folhas continuamente cada vez maiores e mais pesadas. Logo pela manhã, no espreguiçar dos galhos, no bocejo dos pássaros, no raiar dos motores. Para refazer seu ritual no meio-dia e outra vez na chegada da noite.
A senhora varria para fazer ruma, num trabalho tão zeloso quanto inócuo. Caía mais folha da amendoeira do que ela era capaz de juntar. Às vezes despencava do alto uma amêndoa, que ainda em vida, irrigava suco na calçada. Outras decaiam secas e rolavam na saliência do passeio, polpa e casca chupadas tal qual fiapos de manga. Ela ouvia o pequeno barulhinho oco do chão matando no peito a pelota e deixando-a caminhar. No outono, adorava o vento mais forte que batia e sacudia a cabeleira da amendoeira, proporcionando um energizante banho de folhas. Quando chovia, assistia sentada na velha cadeira de papai os pingos pingando de cada extremo, o riacho formado escorrendo de sua copa à sua base, as folhas úmidas caídas grudando-se no solo para não serem levadas pela correnteza.
Um, dois, três.
Manhã, tarde, quase noite.
Quem passasse nada entenderia. Talvez um vizinho ou outro visse loucura na pontualidade e resiliência de Dona Ruth. De fato, a senhora sequer percebia o que outros pensavam ou às vezes comentavam com ela.
“Bom dia, dona Ruth!” saudava um transeunte, no que ela respondia “Dia!” sem desviar o olhar, mantendo-se firme em sua função e obrigação. Depois “Tarde!”, depois “Noite!”
Na ruma das folhas amontoadas, fazia base com a pá de lixo e tampa com a vassoura, levando as folhas que se escapavam pelo amplo vão, espalhando-se em mais espaços, para dentro de uma lixeira que mantinha apenas para isso do lado de dentro de seu portão.
Era sua companheira a amendoeira, de quem cuidava com o carinho de seu alcance. Que ali estava antes, que certamente ali estará depois. Que a viu em todas as suas fases, de menina arteira a senhora solitária. Que, apesar de tantos anos vividos na arcada da coluna e dos passos desfirmes, imponente permanece, cada uma de acordo com sua natureza. Era a amendoeira, afinal, a transcendental, a rompedora dos tempos, a que não se submetia aos caprichos do corpo humano. Enquanto Dona Ruth via seu fim na esquina, hoje mais próximo que ontem, nada parecia mudar para a amendoeira, tão folhada e frutosa quanto sempre.
E saía a senhorinha, dia sim e outro também, pá e vassoura, uma em cada mão.
Um, dois, três.
Manhã, tarde, quase-noite.
Um último ato de controle, embora se traduzisse num gesto de quem não tinha mais por quê. Em reverência à amendoeira que era a significação da impotência que a velhinha se fazia sentir.
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