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Dos pés à cabeça

Dos pés à cabeça

Conheceram-se por um desses aplicativos de internet. Devem ter passado para a direita, ou para esquerda, ou clicaram duas vezes na foto, ou então aquele coraçãozinho do canto de tela foi colorido de vermelho.
 
Ela mais apostando na foto que na descrição do perfil. Ele carregando na descrição do perfil, menos na foto. Ela não via nada de mais por ter colocado uma foto de, pelo menos, 10 anos antes. Agora chegando aos 37, com filho, sofrendo os efeitos da gravidade. Ele, aos 38, tinha que se mostrar criativo, porque já não era o mesmo de quando tinha 26, aquele outro ele que lhe estampava a foto.
 
Começaram a conversar. Trocaram figurinhas. Veja que coincidência: ambos gostavam de pizza. E dos Beatles. Tinham certeza de serem feitos um para o outro quando escreveram que ambos gostavam de praia, mas quando tinha sol. Coisa do destino.
 
O papo era gostoso, fluía com facilidade. Recheados de platitudes, ainda assim, sem atropelos, no ritmo e na cadência da necessidade de cada um.
 
Ela omitiu o filho da equação, elemento a ser estudado apenas nas de segundo grau, quando a complexidade aumenta e Báskara é convocado para vermos se temos condições ou não de participar daquilo. Ele, divorciado, assumiu estar muito bem após a separação, embora ainda sonhasse acordado com o dia em que a ex veria a estupidez que tinha cometido, viesse de cabeça baixa implorando perdão, apenas para sentir-lhe a mão pesada da rejeição de sinal invertido, porque se chumbo trocado não dói deve ser pela média do regozijo de quem impõe a troca e a humilhação de quem a recebe.
 
Marcaram um encontro. Escolados que eram, resolveram que um café aberto dava conta do recado. Lugar público reduz o risco, decerto. Bem de esquina, fácil para quem chega e para quem queira sair fugido.
 
Às 16:30h lá estavam. Ele de camisa xadrez preta e vermelha, barba um pouco comprida, cabelos já ficando grisalhos desgrenhados, uma calça um pouco larga demais para ele – devia ser a que cabia – tênis meio surrado. Ela, de jeans e camiseta cinza um pouco folgada, uma jaquetinha preta bem cortada por cima. E sapatos vermelhos, azuis e brancos, com detalhes impressionantemente belos. Se ela era simples, assim como ele também o era, os sapatos destoavam.
 
Conversaram sem muito entusiasmo. O baque da realidade tinha sido demasiado frustrante. Não que houvesse vantagem evidente, no jogo da imagem virtual, estavam tecnicamente empatados. Tropeçavam, desta feita, numa conversa sem rumo, sem alma. Até tinham mais algumas semelhanças, bebidas de café lhes agradavam, um tanto óbvio pelo local, cappuccino pra ela, espresso pra ele. Sabe como é, abrir-se demais no universo cibernético revela brecha para fazer-se vulnerável. Platitudes se mantiveram, a presença física as tornaram ainda mais superficiais, o que os sufocava.
 
Por não mais do que vinte minutos estiveram na mesma mesa. Ele sempre olhando para baixo. Por vezes, esforçava-se para manter contato visual, mas era automaticamente atraído para o solo. Que desconforto.
 
 
– E aí, como foi? Perguntou curiosa uma amiga a ela.
– Sei lá, estranho. Sabe quando o papo não flui? Não deu muito certo… E outra, ele ficava olhando pro chão o tempo inteiro!
– Que estranho…
– Muito estranho.
 
 
– E aí, como foi? Perguntou ansioso um amigo a ele.
– Cara…
– E aí?
– Ela… Sei lá…
– Sei lá o quê?
– Sei lá, bicho.
 
À noite, sozinho, retomou a conversa consigo. Sentiu-se mal com os acontecimentos daquela tarde. Foi, voltou, refez, desfez.
 
Se eu tivesse que palpitar, diria sem hesitar: foram os sapatos. Não tinha ainda envergadura para suportar o peso de uma mulher com um sapato daquele.
 
Aquela noite sonhou com a ex, mais uma vez, em súplicas. Por via das dúvidas, vinha descalça.
 
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