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Embriagado de dendê, vestido de amarelo

Embriagado de dendê, vestido de amarelo

Meu esfomeado leitor, minha afaimada leitora, se você imagina que o trabalho de se fazer um acarajé se resume ao preparo do verdadeiro néctar dos deuses, engana-se. Deuses, orixás, divino, clame aos céus como sua religião lhe convier. Pois saiba que a Bíblia não conta que no sétimo dia, Javé deitou numa rede para descansar, soltou um “aff” cheio de reticências e garantiu seu acarajé com Coca-Cola. As maiores rixas dos orixás eram garantidas pelo eventual afano do bolinho de feijão fradinho fritado no dendê. Zeus regalava suas amantes muitas com a receita do mais perfeito preparo hambúrguer de baiano.

O toque do celestial ocorre entre passagens do mais pesado exemplo do mundano: uma trabalheira dos 600 DEMÔNHOS. Trabalheira que confronta o fazer-se baiano em sua essência. Antes, no auge da besta paulistice incorporada, eu diria “sou baiano mas não pratico”; hoje, felizmente, pratico muito e cada vez mais. Porque, meus lambuzados companheiros nestas parcas linhas, quem come pagando pela ambrosia fica somente com o recheio, afinal, como receptor da delícia pronto, trabalho maior será catar cabeça perdida de camarão e não limpar os dedos na própria roupa – sendo que este último é missão quase impossível.

“Quem quiser vatapá que procure fazer”

O preparo, apesar de trabalhoso, reserva grande expectativa salivada. Há um prêmio, o fruto do pecado, que mais ali na frente vai se traduzir em fritura frisante no azeite de dendê. O camarão que foi temperado no azeite de dendê. O vatapá que foi enlameado de azeite de dendê. É overdose de dendê!

A embriaguez provoca a ressaca dos dias seguintes.

Não, maledicente senhora, que vive de sorriso de canto de boca desejando revertério alheio por conta da fama INJUSTA (ou não) que a comida baiana provoca. Fique a sua pessoa sabendo que o arranjo com as entidades protetoras do bom acarajé foi feito de acordo com os preceitos mais rígidos de conformidade e bênção. Arranjo para o não desarranjo, por assim dizer.

Quem nunca comeu um bom acarajé quando come se lambuza. As pessoas se lambuzam, as roupas das pessoas se lambuzam, as panelas se lambuzam, os armários se lambuzam, as paredes se lambuzam. Daí que estamos envoltos pela lambuzência com um pé na eternidade. Porque, meu obsessivo-compulsivo leitor, se tem certeza nessa vida como a morte, os impostos, estupidez humana e a porção de lambreta na praia com dose extra de areia, é a de que as manchas de dendê brincam de esconde-esconde.

Não, nem me venha atribuir falta de zelo na faxina. Não é assim que funciona.

Digamos que uma porta do armário tem a manchinha característica, aquele pontinho amarelo gritando na sua cara. Você, contente, assoviando uma canção, busca um paninho úmido, uma bucha com detergente, e esfrega a comprovação de que ali houve felicidade. Depois, limpa-se o pano, ou a bucha, para quando você se virar dar de cara com uma mancha um pouco maior na porta que estava atrás de você. Não, ela não estava ali. Porque, se você ainda não entendeu, a porra da mancha, traquinas, se TELETRANSPORTA a cada raspa de limpeza, inclusive aumentando de tamanho. Você, renitente, limpa a segunda porta. Quando se toca, “BUM” (alô, Joesley), sua camiseta está suja. “Oxe, como pode?” você indaga. Aproveita para colocar a roupa para lavar, para, “BUM”, ver a máquina de lavar manchada de amarelo. O processo, acredite, não tem fim.

Vale mais a pena se entregar aos resquícios de amarelitude para não ser engolidos por eles. Sinto-me, assim, numa espécie de embriaguez constante de dendê, vestido de amarelo para disfarçar o que dá, e numa sanha danada para em breve repetir a dose. É mais forte do que eu. Não vou nem me atrever a dizer a heresia de que “está tudo bem, eu paro quando eu quiser.”, mantra dos viciados que não se dão conta do tamanho de seu problema. Porque, sim, está tudo bem justamente pelo fato de que eu não preciso parar nunca. E se em algum momento não tiver mais nenhum ponto amarelo perdido pela casa, é sinal de que estou fazendo coisa errada. É sinal de que estou voltando à época que era baiano mas não praticava.

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