Eduardo Braz é professor universitário. Tem doutorado em antropologia social e cultural pela Universidade de Coimbra, pós-graduação pela Universidade Federal do Paraná em Direito Ambiental, e graduação em Direito pela UFBA. Sobretudo, Eduardo é amigo que herdei de meu pai, que se formou com ele em Direito.
Responder o que significa a palavra povo é conceituar. O conceito tem um problema porque serve para identificar determinada situação quando a gente visualiza. Então, grande problema disso é que a questão de conceito de povo está muito atrelado ao conceito de cultura. E o conceito de cultura requer uma compreensão muito mais relacionada a entender quais são essas culturas, do que de classificar, ou seja, do que realmente conceituar.
Povo é um agrupamento de pessoas que se identifica historicamente e culturalmente. Cultura é um processo em andamento. A gente não pode entender que a cultura de um povo é algo estanque, algo que é imutável no tempo. Um agrupamento que se vê parte hoje, pode não fazer parte amanhã. Um exemplo são os pataxó e os pataxó hã-hã-hãe, que em patxohã significa diferente. Eles faziam parte de um mesmo agrupamento, mas decidiram formar um novo grupo. Isso não é exclusividade dos povos tradicionais. O Brexit segue a mesma ideia, em que o Reino Unido não se sentia mais fazendo parte daquele contexto.
O conceito de cultura ele é um conceito relacional, depende da historiografia, do momento, dos processos de escolha de cada grupo. Eu entendo que respondi o conceito de cultura, muito mais fácil de explicar, e não o conceito de povo. Mas é muito mais fácil entender o conceito de povo quando você faz uma pergunta: você faz parte de um povo? A resposta depende do entendimento do sentimento de pertencimento de um determinado processo histórico e cultural. A compreensão de um povo único desconsidera justamente a multiculturalidade do nosso país.
Aos olhos do estado, a junção de povo, território e língua formam uma nação. Mas esse é um conceito muito pobre. Ele acaba por ser muito bom do ponto de vista do estado, mas do ponto de vista de compreensão do que é povo, que é o cerne da questão, ele não explica, é vago.
No caso dos povos indígenas, eles precisam ser reconhecidos como determinadas etnias e se reconhecer como determina etnia. Mas além disso tem uma questão das nações indígenas como um todo, de povos indígenas, povos com um conceito muito mais aberto, que é de se diferenciar. Um povo também se afirma como um povo diferente dos outros, se diferenciando desses outros, porque eles têm uma ligação de tradicionalidade, de historiografia. Por exemplo, os povos ameríndios, originário das Américas, que vão do norte dos EUA ao sul da Patagônia. Em toda extensão eles levam a mesma alcunha genérica, que não explica as diferenças culturas, mas acabam se afirmando como povos originários. O conceito de indígena aí é muito mais num intuito de definir povo originário, que de definir etnicamente cada um desses povos.
Quando a gente fala sobre os processos de esbulho que os povos indígenas sofreram e vêm sofrendo ainda hoje, a gente pode observar isso de 2 pontos: tanto do ponto de vista territorial, de impedimento de exercer as suas vivências em seus territórios, mas também do ponto de vista cultural.
Quando a gente fala de povos indígenas, eles têm uma relação muito próxima com seus processos de territorialidade, que vão além da compreensão meramente geográfica e passam pelo sentimento de pertencimento ao lugar. É como se fosse um mutualismo: o índio pertence àquele lugar, assim como aquele lugar pertence ao índio.
Se você pega um povo indígena que vive da pesca, como é o pataxó, e coloca ele no planalto central, mesmo que com uma área muito maior do que a que estão solicitando por demarcação, possivelmente os seus processos de vivência seriam outros, e isso acabaria interferindo muito no próprio modo de existir dos pataxó.
Porque tem plantas medicinais que dependem daquela vegetação, os ritos da lua, do mar… Até o mito de origem do povo vem do mar. O nome pataxó, segundo a mitologia, é uma onomatopeia do barulho da água do mar batendo na pedra—pá! tá! xó…. Isso é um mito, a gente sabe que tem outras histórias para esse nome, mas até a criação disso como mito, por mais que não seja originariamente o porquê no nome ser pataxó, já indica toda a relacionalidade que eles têm com a geografia. Então é uma paisagem viva. Vários autores discutem, inclusive, que você sabe a pertença de alguns grupos, em determinada região, porque aquela região acaba se modificando pela presença do grupo. Ou seja, é uma noção de pertencimento.
No caso dos povos originários, podemos dizer que a questão de povo tem muito a ver com a questão de territorialidade, que é essa noção de localização cultural e geográfica.
Tem uma fala de um indígena, mestra em Direito, Fernanda Kaingáng, que diz que o problema não é que esses povos são invisibilizados, porque todo mundo lembra deles quando a gente fala sobre a área que eles ocupam, sobre a mineração nos seus territórios. Ou seja, eles não são invisibilizados, eles são negados.
Uma compreensão, que vem desde a convenção 169 da OIT, de reconhecimento da autodeterminação dos povos, e entram aí todos os povos tradicionais, é fundamental.
Não é só fundamental do ponto de vista formal, porque o Direito acaba protegendo e criando proteções que acabam por vir a ser normas programáticas, em vez de algo que a gente visualiza. O artigo 231 da Constituição de 1988 tem a proteção tanto territorial quanto cultural dos territórios indígenas, que deveriam ser todos demarcados dentro de um prazo de 5 anos a partir da sua promulgação, mas não são até hoje.
Essa questão da multiculturalidade, de um país que é pluri-étnico, ele não tem só um povo, é entender que existem demandas próprias e que a demanda de um povo indígena é diferenciada internamente, porque cada povo tem suas especificidades.
Até para diferenciar, mesmo quando se quer elevar o status de observação a alguns povos, a gente acaba novamente entrando em uma nova plataforma de ignorância, porque quando se fala que se tem que observar todos os povos indígenas e a gente universaliza todos esses povos, a gente só está fazendo uma nova camada de preconceito. O interessante é que se veja cada um deles individualmente
Ao conceituar povo, assim como conceituar povo indígena, tem-se muito mais trabalho de indicar precisamente o que é, do que entender precisamente o que é. É necessário localizar as demandas deles e suas vivências e efetivamente tornar os seus direitos garantidos, ou pelo menos apreciáveis.
Existe uma negação grande, inclusive, da forma de existir, estabelecendo uma forma folclorizada. Quando a gente vê um índio no cenário urbano, na faculdade, a gente tende a achar que ele não é índio porque ele não corresponde àquele clichê folclorizado que nós criamos sobre o que é ser índio, como se o índio do século XXI fosse o mesmo índio do século XVI.
Tem-se, portanto, várias barreiras que precisam ser quebradas para que se tenham efetivamente garantidas as demandas desses povos.
Para validar e reconhecer a autonomia de povos indígenas em países plurinacionais, o Direito poder ter 2 pontos de vista de partida: o primeiro é regulatório; o segundo é emancipatório. E um não necessariamente nega o outro; eles podem coexistir. As regras que são voltadas para as comunidades tradicionais tendem a ser emancipatórias, mas são normalmente regulatórias. E quanto mais limitada for a lei, quanto mais objetivada e fechada essa lei for, mais restritiva do ponto de vista de possibilidade adaptativa da cultura desses povos.
Eu não vejo mal em um regramento aberto. Não existe regramento capaz de abarcar todas as formas de vivência, nem as de uma sociedade padrão, imagine um regramento que abarque mais de 300 etnias indígenas diferentes, além de quilombolas, de povos de santo, e outros povos. O Direito, para ser emancipatório, deve proteger esses povos e abarcá-los, mais ou menos nos termos da nossa Constituição. O problema não é, portanto, exatamente na formalização das leis. Nós estamos bem servidos do ponto de vista legal, jurídico. O problema é a procedimentalização desses sistemas, porque quando se vai para o direito administrativo, vê-se uma série de problemas muitas vezes conflitantes com o texto da lei em seus diferentes artigos.
Um caso emblemático vem de uma pesquisa que eu fiz numa comunidade dentro de uma reserva indígena. Ou seja, o índio pode viver de acordo com seus modos e costumes tradicionais, sem interferência de outras pessoas, só que nesse território existe uma sobreposição de território de área de proteção ambiental. O que isso gera? De um lado, quem tutela essa região é a Funai, que permite a exploração da terra de acordo com o viver indígena. Do outro, quem regula a área de preservação é o ICMBio, que tem uma perspectiva biocêntrica, que acha que consegue proteger a natureza se consegue afastar o meio-ambiente do ser humano.
Como, num cenário de sobreposição de territórios, se consegue ver este tipo de demanda? Quem vai ter razão quando as ações forem conflitantes, quando ICMBio e Funai fazem a parte que lhes cabe, mas estão em lados opostos na interpretação da lei?
Do ponto de vista jurídico, nenhum deles está errado. Porque a norma é abrangente, mas não está sendo utilizada pontualmente.
Por questões como essas é que eu sou absolutamente contra uma conceituação muito específica, porque só seria possível fazer isso se tivesse um trabalho que não vai existir de uma confluência entre o ordenamento jurídico com o conhecimento antropológico, em que os dois conhecimentos, juntos, conseguissem construir pontualmente localizadamente o que deve ser protegido em cada uma dessas etnias, o que se tornaria impossível de executar, material e substancialmente. E mesmo se isso fosse possível, seria temporalizado, porque essas culturas elas podem variar, conforme já exposto.
Com isso, os conceitos jurídicos abertos são uma boa fonte, porque se se escreve que a proteção dos territórios deve ser preservada, que se deve dar possibilidades para que as comunidades consigam ter suas culturas passadas intergerencionalmente. Correr o risco da brecha jurídica é melhor que correr o risco do neocolonialismo, de se imputar ao outro como ele deve se comportar, onde ele deve agir e qual o limite tanto da cultura quanto do território de um povo.
O povo brasileiro é uma formação antropofágica de povos. Antropofágica não é exatamente canibal. Canibal é comer a carne. Na antropofagia, come-se o ser, que passa a fazer parte do seu corpo. A gente constantemente adquire elementos de outros povos para a formação do que a gente é. E esses elementos são vistos convivendo nas mais diversas situações.
No Carnaval, por exemplo, tem atabaque, com guitarra, com bateria, que vêm de elementos e de lugares diferentes. A feijoada faz parte da cultura do povo brasileiro. É um alimento em que se misturam coisas de povos de santo, com a feijoada portuguesa que foi retransformada. O Candomblé vem de vários povos africanos que foram num sincretismo religioso essa nova religião.
O povo brasileiro é um povo sincrético.
E ele esquece que é sincrético quando ele vai olhar outros povos que compõem a nação. Toda essa formação complexa de povo que não vem de uma linhagem típica de raça é descartada por fugir de um ideal de padrão de povo brasileiro. Esses povos tradicionais, que têm uma ligação muito mais voltada à ancestralidade do que a nossa, acabam sendo invisibilizados porque não temos contato diário com eles.
Uma fala homogeneizante de povo brasileiro acaba por desconsiderar não só os processos de formação desses povos, como também o processo de formação do próprio povo brasileiro, que é um processo antropofágico, de junção de vários outros povos e culturas e que está localizado no agora. O conceito de povo é construído no dia-a-dia.
O Brasil é um país pluri-étnico, as pessoas acreditando ou gostando disso ou não.
Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.
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