Antonio Bispo, também conhecido como Nego Bispo, ou Velho Bispo é das figuras mais carismáticas do Brasil. Com alta visibilidade nos meios acadêmicos, apesar da pouca formação educacional tradicional, é um sábio da cultura quilombola e dos métodos resolutivos. Conversei com ele nos dias 17 e 18 de junho de 2020. Impossível não mudar a percepção de mundo depois de ler e ouvir o que Nego Bispo tem a dizer, antes dele seguir para rede a descansar.
Eu nasci no dia 10 de dezembro de 1959 no Vale do Rio Berlengas, quando lá ainda era um povoado chamado Papagaio, no município de Valença. Hoje esse povoado foi elevado à categoria de município de Francinópolis e fica numa região muito interessante porque fica na confluência entre o cerrado, o semiárido e a região dos cocais, na pré-Amazônia.
Fui formado por mestres e metras de ofício que me passaram saberes ancestrais. Tive a felicidade de receber o bastão tradução por meu tio-avô. Então eu sou um dos guardiões dos saberes da família e fui para a escola escriturada apenas para traduzir os contratos escriturados para os contratos orais. Coisa que eu fiz quando criança, lendo bula de remédio, escrevendo cartas, fazendo contabilidade de açougue. Fiz quando adulto como diretor do sindicato dos trabalhadores rurais, fui também de partido político, participei de processos eleitorais, e faço hoje como um dos mais velhos ajudando a traduzir a maior parte das legislações quilombolas.
Hoje eu moro na comunidade do Saco do Curtume, quilombo que é um território retomado, contínuo ao Riacho dos Negros. A minha vinda para cá foi articulada por vários quilombos, pra que eu pudesse contribuir com o que eu sempre fiz, a tradução dos contratos e a articulação dos saberes entre os quilombos, os quilombolas e as demais comunidades da região.
A história é consequente. Eu sou partidário da compreensão de que não existem coincidências, existem confluências. Eu nasci no meio de um povo que tinha a gestão de um grande território. Lá existiam 18 ou mais engenhos de produção de rapadura, sendo que 15 eram de propriedade dos negros, e o restante era feito pelos negros na situação de mestres e mestras. Meu bisavô tinha 3 engenhos, e a nossa família cultivava as melhores terras do Vale do Berlengas.
Sendo educado pela minha geração avó, eu compreendi que um povo se constitui através de uma trajetória histórica e ancestral e das relações cosmológicas e ambientais.
Um povo não se forma a partir de uma ideia, mas a partir de um conjunto de relações com os demais seres do universo, em relações cósmológicas.
Na nossa compreensão, nós somos um povo fugido. Minha família não tem registros de escravização até o meu trisavô. Meu bisavô dominava a cadeia de produção de cana-de-açúcar e de grãos. A nossa comunidade, quando me entendi por gente, só comprar o tecido e o sal, e olhe lá, porque sabiam fazer. Era um povo que sabia fazer quase tudo.
Mãe Joana, uma das minhas grandes mestras, plantava algodão, tratava as plantas, colhia, fiava, tingia com tinta das cascas das plantas e folhas, tecia e confeccionava roupas. E eu tive a felicidade de participar desse processo com mãe Joana. É um povo que tinha um grande saber.
E praquele povo ter um grande saber, ele é um povo que não deve ter sido escravizado, e se foi, foi por pouco tempo. É um povo que conseguiu guardar esse grande saber nas relações cosmológicas, de um saber que vem de África e que se juntou aos saberes dos povos indígenas. Nós somos ‘afro-cosmológicos’, ou seja, somos africanos em qualquer lugar do mundo.
O Bolsonaro faz parte de uma sociedade eurocristã colonialista. Um dos lemas do governo, inclusive, é mal colocado. Ele fala ‘Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.’ Eu já ouvi isso de outra forma. Para colocar Deus como superior, deveria se dizer ‘Deus acima de tudo e o Brasil acima de todos’. Então ele está colocando a pátria acima de Deus, porque Deus está englobado no tudo. Quando ele usa isso como jargão principal de suas falas, isso significa dizer que ele é um eurocristão fundamentalista. Portanto, ele tem uma cosmologia mono, e quem tem uma cosmologia mono não consegue lidar bem com a diversidade.
É uma situação grave. É um povo que precisa de tratamento. E quem pode tratar essa sociedade dessa situação cosmofóbica são as nossas referências cosmológicas. Por isso que eles não suportam a nossa gente. As nossas terras não são amaldiçoadas, a nossas ervas não são daninhas, as nossas divindades, em vez de nos punir, nos festejam, nos orientam, nos ensinam.
O eurocristão cria figuras abstratas para se distanciar da natureza. Ele cria o estado para isentar a sociedade. É um povo que forja uma criatura que manda no criador. Os eurocristãos criaram o diabo para justificar Deus. Sem o diabo, Deus não teria mais o que o fazer, e os eurocristãos estariam desesperados, porque não teriam mais a salvação para vender.
O bolsonarismo é, portanto, uma marca, resultado de uma sociedade doente. Assim como o lulismo ou qualquer ‘ismo’ personificado, é apenas marcas de um produto colonialista. A essência de tudo isso é o colonialismo. Colonialismo que surge na Bíblia, quando Moisés sai para procurar a terra prometida. Os colonialistas não conseguem parar, eles vivem procurando sempre as terras alheias para atacarem, porque eles esgotam a terra onde vivem.
Davi Kopenawa disse em entrevista na TV, quando eu estava me tornando adulto, que ‘os brancos vão acabar com todas as espécies, e quando não tiver mais com o que acabar, vão acabar consigo mesmos.’
Movidos por essa doença chamada cosmofobia, os eurocristãos, para se movimentarem pelo mundo, se movimentam apenas por meio dos transportes materiais, para invadir, influir, tentar dominar. O povo contracolonialista de cosmologia politeísta, que pode ser até cristão, mas não é monoteísta, ele se transflui. Ele não se movimenta sozinho, ele se movimenta com um conjunto de forças, de energias e de outros seres, inclusive ancestrais. E essa transfluência é utilizada para confluir.
Quando os africanos chegaram ao Brasil, encontraram os indígenas. Através de uma linguagem cosmológica, eles conseguiram se comunicar. Os indígenas ajudaram a criar os quilombos, eles compartilharam o saber e o território. Os quilombos nunca guerrearam com os indígenas por território.
A vida vive de forma conectada com a natureza. A gente é a natureza, não somos donos da natureza.
A diferença fundamental é que os eurocristãos são um povo do ter, enquanto nós somos um povo do ser.
Eles são do saber sintético, nós somos do saber orgânico. O saber deles é explicativo, o nosso é resolutivo. Eles pensam do integrado para o segmentado e nós fazemos o caminho inverso. Eles querem crescer o estado para crescer o povo, nós queremos crescer o povo e nem precisa crescer o estado. Eles pensam de forma linear e vertical, nós pensamos de forma circular. Tudo que a gente faz é rodando. A capoeira é rodando, o samba, o reggae, o batuque, até os nossos cabelos, quando estão grandes, são rodando, são enrolados.
Quando a gente pensa na circularidade, nosso pensamento não tem limite. Por isso que o pensamento deles se sustenta na escrita, enquanto o nosso se sustenta na oralidade. Porque a oralidade é viva, está sempre em movimento, é fôlego, é ar, é vento, a palavra é som, vibra. A escrita não vibra.
Eu escrevi um livro intitulado ‘Colonização, quilombos, modos e significações’, e nele eu trouxe algumas questões com relação a essa disputa de narrativas. Tanto é que o livro tem um capítulo chamado ‘guerra das denominações’. Como eu fui adestrador de bois, eu sei o que significa nominar. Adestrar e colonizar é a mesma coisa.
Desde o início do colonialismo até a Lei Áurea, os quilombolas foram considerados organizações criminosas e os indígenas foram considerados selvagens. Na Lei Áurea há uma confluência em que os
quilombolas não são considerados mais criminosos, mas são silenciados, passam a ser nada, até a Constituição de 88, reconhecidos como povos com direitos, inclusive para regularização de suas terras.
Reconhecimento é maior do que a democracia.
Durante todo esse período, quilombolas e povos indígenas entram nas instituições do colonialismo. Porque os nossos mais velhos disseram que a gente precisa transformar as armas dos nossos inimigos em defesas, para não transformar nossa defesa em armas. Nós usamos a Constituição como defesa, embora seja uma arma do colonialista. Só que a Constituição é escriturada, e nós somos da oralidade. Para poder entender e traduzir, quilombolas e indígenas passaram a frequentar a escola tradicional. E hoje temos uma confluência entre indígenas e quilombolas que entendem mais inclusive de outras ferramentas, como a tecnologia. A tecnologia acelerou o processo de confluência entre nossos povos.
Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.
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