Ordep Serra tem esse nome por conta de uma negociação entre dois sertanejos imaginosos. Seu pai, Pedro, não quis que seu filho tivesse o mesmo nome, no que sua mãe, desejosa de homenagear o marido, escreveu-lhe o nome ao contrário.
Ele costuma se apresentar de uma maneira que, diz ele, as pessoas acham esquisita: “Eu sou Ordep Serra, filho de Xangô e marido de Regina.” Em vez de esquisita, penso ser bela.
É antropólogo e professor aposentado pela Universidade Federal da Bahia, onde foi pró-reitor de cursos extensão e chefe do departamento de antropologia por muitos anos. Tem muitas pesquisas sobre povos indígenas e foi um dos fundadores da Associação Nacional de Apoio ao Índio. Tem também uma ligação muito forte com o povo de santo, com quem também fez muitas pesquisas.
Pratica a Antropologia por mais de meio século. É bacharel em Letras e doutor em antropologia social pela USP, com estágios na École des hautes études en sciences sociales (Escola de estudos avançados em ciências sociais).
Foi coordenador, junto com Júlio Rocha, diretor da Faculdade de Direito da UFBA, de 5 congressos internacionais de direitos dos povos tradicionais.
Mais importante: é um professor admirado por todos seus alunos, coisa de gente que deixa um rastro de bem-querer por onde passa, esbanjando sempre um largo sorriso e um humor sagaz.
Com ele fiz a última entrevista desta edição da Papo de Galo_ revista, realizada na manhã do dia 19 de junho.
A palavra povo tem vários significados, e tentar reduzir a um só é complicado. Ela é polissêmica, como se diz, tem diferentes acepções. Se você consulta línguas distintas, você vai ver que não há uma coincidência. Por exemplo, quando você diz folk em alemão, quando você diz gens em francês, quando você diz pueblo em espanhol. Isso vem da polissemia do termo que já existia no latim. Populus designava a gente armada, que era capaz de se armar. A palavra tem uma longa história e ela se diversificou um pouco.
Agora, quando se usa, do ponto de vista antropológico, o termo povo, está se falando de um grupo humano que tem sua própria organização e que se reconhece como uma unidade social, e é também reconhecido por outros como uma unidade social, tendo uma ou mais identidades étnicas, mas que se vê, assim mesmo, como um conjunto organizado, e projeta uma imagem de si que o orienta.
Povo não depende de estado.
Nós tivemos no Brasil um estado antes de ter um povo, que ignorava parte do contingente humano que aqui viviam, mas não estavam integrados a esse estado. Assim como os negros também não compunham o domínio cívico. Então, quando se quer restringir povo a domínio cívico, você já tem um problema inicial no caso brasileiro.
Povo, para mim, é essa unidade social que busca organizar-se e se reconhece como tal e que pode envolver diversidade. Não há conflito entre a ideia de diversidade étnica, religiosa, ou qualquer outra, e a noção de povo.
Há de se reconhecer essa diversidade, não só porque se está sob a regência do mesmo estado, mas porque se criam laços de comunicação, porque se dialoga. Povo é um diálogo e reconhecer a si e ao outro é fundamental.
Associar a ideia de povo a de uma unidade homogênea é extremamente perigoso. Isso sempre levou para projetos autoritários de dominação e até para genocídios.
É necessário fazer algumas distinções.
Por um lado, nós temos um estado brasileiro que passou por mudanças muito sérias, muito graves. Quando se dá a Independência do Brasil, uma parte do que hoje se chama de Brasil não estava integrada ao conjunto, que era o Grão-Pará, que se associa depois ao Brasil. Então a gente tem um estado, uma sociedade civil, um conjunto de cidadãos que seguem as leias e as normas e por dentro disso tem-se uma variedade muito grande. Nós somos um país multiétnico. É muito perigoso querer homogeneizar. Em nome de quê? Em nome da raça? Em nome da cultura, da religião? Há de admitir e reconhecer as diferentes cultura que temos no país.
O diálogo entre as culturas é dinâmico. Ele envolve relações tensas, às vezes envolvem conflitos, que ajudam, de certa ma-neira, com a dinâmica histórica, a constituir uma unidade maior.
Povo brasileiro é uma constelação de povos.
O que é ser brasileiro? Não há um modelo que se possa ser utilizado como protótipo e tentar encaixar todo mundo nele, sacrificando a diversidade do povo brasileiro a um modelo único.
Eu lembro de uma situação muito interessante. Eu estive à frente de uma luta para que se reconhecesse pela primeira vez um monumento negro como patrimônio do Brasil. Foi o caso do terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, um terreiro muito antigo. Quando a gente fez essa campanha, um grupo de gaúchos da sociedade germânica escreveu dando apoio à essa reivindicação dos negros da Bahia. Isso é muito bonito. É necessário que possamos nos solidarizar.
Há um tempo eu li um livro que é uma antologia de contos chamada “Primos“, escrita por árabes e judeus. Eles não deixaram de ser árabes e judeus para serem brasileiros. Pelo contrário! Aqui no Brasil eles encontraram a possibilidade desse diálogo que às vezes não conseguem ter internacionalmente. É essa perspectiva generosa que a gente precisa adotar.
O rótulo ‘índio’ é heteronômico. Foi aplicado a povos diferentes pelos colonizadores europeus que aqui chegaram. Primeira foram chamados de ‘negros da terra’, que é uma maneira de distinguir-se daquela gente e distingui-la dos negros que escravizavam em África e traziam para cá. Aplicou-se esse rótulo genérico, vazio, ‘índios’, que vem de um engano de Colombo, que chegou na América e pensou que estava chegando às Índias. Colocou-se, assim, dentro de um balaio único, povos muito diferentes.
Só que os índios, no seu processo de afirmação, preencheram positivamente esse rótulo. Eles descobriram as suas afinidades, se associaram, criaram organizações como APIB (Articulação dos povos indígenas do Brasil), que é criação dos índios. Descobriram a sua posição comum no mosaico brasileiro e deram um novo sentido ao rótulo indígena. Hoje, a palavra tem um significado para eles, e este é o significado mais importante. Um rótulo que era um equívoco foi apropriado e transformado. Assim como o rótulo de ‘negros’, dado pelos europeus a todos aqueles de pele mais escura.
Assim, hoje se combina uma ideia de diversidade e de unidade. A unidade é política, que vem do reconhecimento de direitos comuns e da disposição de lutar por esses direitos. Isso é uma dádiva preciosa para o Brasil.
Quando estive no Xingu, descobri algo extraordinário. Aquilo que pra mim era floresta virgem, descobri que era coisa cultivada durante séculos por uma constelação de povos que se instalou ali e que conseguir formar o que a gente chama na historiografia e na antropologia de uma ecumene. Quer dizer, diversas sociedades e culturas que se reúnem num mesmo ponto e criam uma cultura comum. Isso é uma lição política valiosa. Os povos indígenas são muito importantes para o Brasil. Eles devem ser motivo de admiração, de encantamento.
No mundo inteiro, qual a imagem dos povos indígenas? É bem diferente da imagem do atual governo. Enquanto o atual governo brasileiro tornou a imagem do Brasil negativa, motivo de lástima e de escárnio, a imagem dos povos indígenas é cada vez mais brilhante. Basta comparar as imagens internacional do Cacique Raoni ou de Sônia Guajajara com a do nosso chanceler ou do presidente.
No caso do Xingu, tem-se ali uma área de refúgio. Com o avanço das frentes agrícolas brasileiras, que foram chegando e empurrando os índios para o sítio em que se refugiaram, concentrando povos que muitas vezes eram hostis uns aos outros. Mas eles conseguiram estabelecer aquilo que a gente chama de ‘pax xinguana‘. Eles viram que a única maneira de resistir à destruição que os colonizadores neo-brasileiros estavam fazendo eles se tornarem cada vez mais solidários uns com os outros. Inicia-se, assim, um interessante regime de trocas intertribais e constrói-se uma ecumene.
A relação deles com a floresta sempre foi uma relação mais respeitosa. Às vezes se pensa que é porque eles não tinham uma técnica tão avançada de exploração da terra, mas não é verdade. É que suas culturas incorporavam cosmologias diferen-tes, não sendo tão antropocêntricos quanto os ditos ocidentais.
O avanço das atividades extrativistas, como o garimpo, está destruindo a possibilidade de vida de toda a população brasileira. Eu fico preocupado com meus netos e com as crianças que vão nascer. Se você perde a Amazônia, se você desertifica o cerrado, o que vai ser de todos os brasileiros? Estamos gerando fome e sede e pandemias novas. Porque o desequilíbrio ecológico é a fonte das pandemias.
Assim, estes avanços são crimes contra humanidade. Já um sério crime contra a humanidade o que estamos fazendo com os índios brasileiros, que estão sendo exterminado. Já é um crime contra a humanidade o massacre da juventude negra nas favelas. E é também um crime contra a humanidade a destruição de um patrimônio precioso para todos os humanos, que são as florestas, biomas como o cerrado. Isso é bestial. Precisamos apelar à sabedoria de outras culturas que foram mais felizes do que a nossa nesse ponto. Pra sair do impasse em que nos colocamos agora, precisamos de todos os saberes, não só o de nossa civilização, mas o saber de todo o mundo. É precisa dar um jeito de se recorrer ao tesouro de sabedoria de todos os povos e reconhecê-los como povos criadores. É preciso reconhecer e respeitar outras sociedades e outras culturas que fazem o Brasil tanto quanto a cultura ocidental. Temos que vencer, sobretudo, o escravismo. A mente da classe dirigente é escravista e racista até o fundo da alma. Temos que vencer o racismo. Não há Brasil se a gente continuar nessa onda de racismo, o país acaba. Com racismo, não há paz, não há justiça, não há ordem.
A desigualdade é o problema, a diversidade não. Nós somos diferentes. E daí?
Temos que garantir a igualdade no usufruto do bem comum em um dos países mais desiguais do mundo.
Quem tem algum amor pelo Brasil tem que bater-se contra a desigualdade e defender a diversidade. A verdadeira unidade é aquela que sabe aproveitar-se do tesouro da diversidade.
O Brasil é um país multiétnico, que abrange povos diferentes, e faz deles um só. Ou é isso, ou ele vai destruir-se.
O povo brasileiro é resultante de um diálogo que tem que se tornar cada vez mais intenso e igualitário entre diferentes povos e culturas que aqui se instalaram.
Para fazer isso, precisamos vencer o racismo e o escravismo e procurar de todas as maneiras superar a desigualdade, que é o câncer da nossa economia, o que nos puxa pra baixo. É preciso abandonar o autoritarismo e procurar a democracia real, que é diálogo, abertura, transparência. Não há democracia real quando você esconde o que o estado está fazendo, por exemplo, ao ocultar dados e estatísticas. A gente precisa vencer essas coisas e pensar no povo brasileiro como essa macro unidade que compreende povos e gentes distintas.
O povo brasileiro tem que ser um que abrace diversos povos e que promova uma verdadeira igualdade numa relação mais equitativa, mais humana. E ser, enfim, um conglomerado de culturas, de saberes, de povos livres que se respeitam e se tratam como iguais. É um sonho, claro. Mas prefiro crer que é possível.
Entrevista publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #3.
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