Na segunda-feira, publiquei um artigo no Correio* intitulado “O Bahia é o time de todos“. Indo além da repercussão extremamente positiva que teve na torcida do Bahia, para alguns setores das torcidas do Vitória, não caiu bem. E dentre os comentários mais recorrentes que se espalham pelos grupos de torcedores no WhatsApp e em algumas mensagens que recebi é a de que “torcedor do Vitória não pode falar assim do Bahia”, ou “só pode ser Bahia”. Os mais sensatos na discordância disseram que “parte da torcida se sentiu traída”.
Estas manifestações de insatisfação da torcida do Vitória me levaram a pensar sobre muitas coisas. Sobre o que significa ser escritor e escrever sobre o maior rival. Sobre profissionalismo e criatividade. Sobre o papel de cada clube. Sobre a imprensa em si. Sobre o papel do futebol na sociedade. Sobre o contexto de polarização que repudia qualquer opinião contrária. Mas, principalmente, sobre liberdade de expressão.
As bolhas identitárias
Na fase de crescimento de uma pessoa hoje adulta, coisa de 10, 20, 30 anos atrás, tudo era muito mais simples. Os jornais eram as principais fontes de informação, poucos canais de televisão transmitiam seus sinais, o rádio era forte. Não havia internet. Com isso, a voz cada um de nós só tinha vez no coletivo.
Passamos, então, a nos manifestar em grupos preferencialmente amplos. E assim nos tornamos, por exemplo, torcedores de um clube, moradores de um bairro, apreciadores de carros. O que unia a todos era item amplo demais, necessariamente. Especificar demais gostos e quereres nos fazia ter menos possibilidade de inserção num grupo.
Assim, opiniões polêmicas demais eram mantidas escondidas no armário da intimidade, porque no grupo não prosperavam. E assim contribuía para sermos também mais tolerantes, porque o contraditório fazia parte da convivência em sociedade.
As redes sociais mudaram esta realidade. E conseguiu gerar duas quebras de paradigmas importantes.
A primeira, porque ficou fácil demais encontrar pessoas com o mesmo pensamento, não importando quão radical e bestial fosse. As estupidezes de cada um saíram da escuridão armário e ganharam holofote próprio.
A segunda, porque passou a não ser mais necessário o contato social para validar ou frear impulsos. Tudo pode ser feito online.
Com isso anabolizamos o viés de confirmação que todos buscamos. Passamos a não nos inserirmos mais em grupos majoritários, mas em diversos grupos menores que confirmam tudo aquilo que queremos ouvir.
Os problemas, claro, são graves. Um dos mais evidentes é o nosso fechamento ao contraditório. “Se tantos pensam como eu, devo estar certo.” Saiu de campo a avaliação social que tende ao meio para o efeito binário de certo e errado que a bolha identitária prega.
E as bolhas vão crescendo, substituindo o sentido de pertencimento. Em vez de aspectos geográficos, familiares ou de afeição, sentimo-nos parte de correntes de opinião. Que, via de regra, não aceitam o contraditório (e como aceitar, se tantos – e cada vez maior número – pensam da mesma maneira?)
Viramos reféns do monstro no armário.
A radicalização de moderados
O futebol não é um mundo à parte nesta reorganização social. Aliás, tanto pelo contrário. Porque o futebol abriu o campo para que se proliferasse a receita do desastre: uma ligação sentimental profunda e o repúdio ao outro.
Naquele período de 20 anos atrás as torcidas eram mistas. Convivíamos com o oposto na cadeira do lado. Era a realidade que tornava impossível o confrontamento e favorecia a interação pacífica de “oponentes”.
Várias questões foram contribuindo para a escalada da violência (física ou verbal) até que chegamos ao ponto de agora.
As torcidas organizadas empenharam papel fundamental neste processo. Mais uma vez, o instinto de pertencimento (e de preservação) em ação. Em bando somos mais fortes, nossa voz tem mais poder.
Mas as torcidas organizadas, que originalmente eram o catalisador da festa na arquibancada (que não lembra da Raça e da Leões da Fiel?), evoluíram para ser um culto que só aceita radicalismos. E com isso, atrai apenas aqueles que flertam mais com o extremismo.
Ficam de fora os moderados. E em quantidade, os moderados são maioria. Para chegar ao ponto de agora, era necessário que os moderados mudassem a maneira de ver e acompanhar o futebol.
Dois eventos foram também importantes neste trâmite da mudança de percepção do que é o futebol para os moderados: as mesas redondas e a normalização de comportamentos escusos, como as brigas campais de jogadores dentro do gramado.
As mesas redondas
Entenda: estes itens todos que coloquei não explicam sozinhos o fenômeno. Nenhuma construção sociológica funciona desta maneira. O que vale é como todos andam em conjunto e influenciam juntos o ponto onde chegamos.
E como as mesas redondas e a mudança de comportamento da maneira de acompanhar o futebol esticaram a corda da radicalização?
A explicação está na alimentação das emoções mais primitivas.
A racionalização dá trabalho. Pensar é complicado. E o futebol, ora, é entretenimento, então, deixemos o mais trabalhoso para momentos mais propícios.
Este entendimento foi ao encontro de uma vontade maior que estava, em teoria, parada. Faz sentido mercadologicamente, inclusive. Basta zapear pelos canais esportivos da TV a cabo e você verá que o que existe é mesa redonda de cabo a rabo.
E qual a linguagem destas mesas redondas?
Todas, invariavelmente, têm uma linha mestra: o confrontamento puro e simples.
Humor? Variação do confrontamento. Palpites? Um pra cheio para polêmicas em cima de erros que nada querem dizer. Polêmicas? Muitas, quanto mais melhor. Análise tática? Só por comentarista setorista.
Assim surgiram apresentadores como Neto, que passa o programa inteiro esbravejando estupidez. Chico Lang, atacando qualquer um que não fosse corintiano. E o humor depreciativo vindo de acompanhamento, sempre diminuindo o adversário, ou a pessoa do lado na bancada.
Na Globo, a saída foi o humor. A análise rasa, entretenimento puro, criação de personagens.
A chave da audiência, que viabiliza patrocínios e investimento, é o vira meme.
E o que sumiu?
Sumiu o cronista. Sumiu aquele que olhava o futebol do ponto de vista lúdico. Sumiu o amenizador do tom. Agora, a batalha é para ver quem grita mais alto. Não se trata mais de convencimento. Trata-se de domínio à força.
As mesas redondas são o Balanço Geral do futebol.
A gota d’água nas propagandas de sócio torcedor
O cenário já contribuía, portanto, para a alimentação contínua da emoção. E um elemento se tornou a gota d’água: a comunicação do programa de sócios torcedores.
E qual o mote de TODA comunicação de programa de sócio torcedor?
“Só é torcedor DE VERDADE quem é sócio torcedor.”
Como potencial consumidor deste produto, tudo neste apelo é deplorável.
Primeiro que tenta tocar na culpa para fazer o torcedor se associar. De que se ele não se associar, ele não é o torcedor que poderia ser. Ou melhor: ele não é torcedor suficiente. Isto tem nome: chantagem emocional.
Segundo que o clube acossa o torcedor – como vemos exatamente agora em ação no Vitória – dizendo que “o Vitória precisa de você, faça sua parte”. Transfere-se a responsabilidade integralmente para a torcida. Esta tática ganha requintes de crueldade com a “falta de dinheiro”, “situação falimentar”. Instiga o medo, um necessário cuidado a um elemento afetivo importante. Um degrau mais alto da chantagem emocional.
O terceiro é o desprezo total à relação comercial envolvida na associação. Porque esta é, sim, uma relação de compra de serviço. Você paga para ter retorno em algum benefício. Facilidades no acesso ao estádio, na compra de ingresso, descontos em produtos oficiais, participação em promoções especiais, reconhecimento, e mais tantos etc. Só que exigem praticamente um cheque em branco: se associe e mantenha as mesmíssimas dificuldades de agora.
Este assunto específico da melhor estrutura do programa de sócio torcedor, entretanto, será abordado com mais profundidade em artigo posterior. O ponto que quero destacar é um perigo ao qual devemos levantar bandeira vermelha e entender que está, sim, tudo errado. O mesmo radicalismo que já se exibia direcionado aos adversários, agora passa a ser, também, direcionado da porta pra dentro.
Cria-se, pois, o modelo de gradação de torcedor.
Artimanha dos fracos, que precisam rebaixar o outro para se sentirem mais relevantes e importantes.
Assim, assistimos a mais um capítulo da proliferação do extremismo quando olhamos para dentro de casa e podemos apontar para o outro e dizer “eu sou mais torcedor que você”.
O desrespeito às diferenças
Some tudo isso – mais uma vez, há tantas outras nuances envolvidas, não se resumem ao que está aqui exposto – e veja a explosão de um ambiente totalmente avesso à diferença. As diferenças passam a não ser comuns. Pelo contrário, passam a ser itens que devem ser combatidos veementemente.
Seja interna ou externamente, o debate foi extinto. O que importa é o grito mais alto, a exaltação com a veia mais saltada, o autorreconhecimento como torcedor superior.
Não é mais preciso ouvir o outro lado para se chegar a uma opinião embasada. Estamos todos referendados por grupos de apoio em nossos mais íntimos desejos que confirmam que o meu ó-tão-superior querer é o modo correto de se ver e viver a vida.
Esquece-se o livre arbítrio, joga-se para escanteio a empatia, fecha-se a cortina para o contraditório. Abre-se, assim, um portal para que se tente a unificação de opiniões ao modelo justo: o individual.
Só que isto tem um pequeno problema: é absolutamente impossível.
Entendendo cada perfil de texto
Existem muitos textos possíveis para se falar de futebol.
Existem aqueles que nada são, que amontoam obviedades e de onde nada se extrai.
Existem as opiniões, que muitas vezes focam mais na polêmica.
Existem as análises táticas, estas que se proliferam, que enxergam futebol apenas como negócio e matemática exata. Uma alma frígida para algo que é mais afeito a emoções.
Existem, em menor quantidade, os cronistas contadores de histórias. Tostão é um destes que valem cada letra.
Tem outra categoria de cronista semi-extinta: o contador de uma história não-real a partir de fatos. É onde tento me inserir. Misturando fantasia e realidade, buscando o elemento humano acima de tudo.
E existem os contistas, como o Luiz Guilherme Piva, por onde muitas vezes me aventuro.
E qual o perfil que domina a leitura recorrente de futebol? Análises táticas e opiniões em cima do muro, destas feitas para não desagradar ninguém, exaltando com comedimento, criticando com precaução, evitando retaliações de qualquer lado, mas deixando de lado, muitas vezes, o que precisa efetivamente ser dito.
Rivalidade e criatividade
Armando Oliveira era botafoguense. Um dos maiores jornalistas brasileiros da história, escreveu uma frase emblemática:
A tabelinha de Pelé e Tostão confirma a existência de Deus.
Pelé? Santista. Tostão? Cruzeirense.
Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores escritores da história do Brasil, vascaíno, também se rendeu a Pelé:
O dificil, o extraordinario, não é fazer mil gols como Pelé. É fazer um gol como Pelé.
Já Nelson Rodrigues, talvez o maior cronista de futebol de todos os tempos no Brasil, não escondia sua paixão pelo Fluminense. O que não evitava que algumas de suas maiores crônicas sejam de exaltação ao Flamengo.
Estes casos, de monstros sagrados da literatura nacional, exemplificam aquilo que é, sim, permitido e possível de ser feito: um torcedor de um time escrever sobre jogadores e times rivais.
Cabe aqui entender o papel da criatividade. Aos escritores, como estes citados, há nativa uma habilidade: a de captar sentimentos difundidos e construir uma história baseada nela. Não é necessário que sejam portadores destes sentimentos. Necessário é que se tenha uma grande capacidade de observação e tradução ao texto.
Há limites, no entanto. Um código de ética. Exaltam-se sentimentos, desde que não sejam de intolerância. É o paradoxo da tolerância, de Karl Popper, em ação. O limite da tolerância é a intolerância.
Para quem não é criativo, no entanto, e tem uma capacidade cognitiva limitada, não existe a possibilidade de se falar ou escrever sobre algo que não seja autobiográfico. Não existe ficção para esta gente; todo processo só existe na experiência. Isto, claro, é uma falácia.
A rivalidade entre times de futebol rendeu crônicas e histórias fantásticas na óptica dos 3 listados acima e de tantos outros que enveredaram por esta seara. Não apenas é possível ser torcedor de um time, como é saudável. Quando bem escrito, diz muito da capacidade do escritor.
O elogio escondido na infantilidade, no desconhecimento e na arrogância
Com o artigo sobre as campanhas afirmativas Bahia, recebi inúmeras mensagens de torcedores do Vitória em diferentes níveis de fúria. Com palavras de menor ou maior nível de agressividade, o teor dos contatos seguiam uma linha de raciocínio que externava infantilidade e arrogância.
A infantilidade está relacionada à incapacidade de lidar com o contraditório, de se render às limitações disseminadas de que “um torcedor não pode falar de outro”. A imaturidade emocional vem refletida na mensagem que se traduz em “ei, não escreva o que eu não quero ler.”
Para esconder o efeito real, procuram fiapos de argumento que, na cabeça destes, contradiz tudo. Se estou exaltando as campanhas afirmativas, pega Vinícius e seu triste papel em 2018 para dizer que não é bem assim. Atrevem-se até a voltar ainda mais no tempo. Li fatos que ligavam aos tempos de Osório Vilas Boas, nos longínquos anos 70.
Estabelece-se, assim, a necessidade de de uma coesão impossível. Qualquer erro – mesmo que enterrado no passado – invalida todas as novas atitudes. Não existe, pois, correção. Há de se pagar eternamente por dívidas inexistentes, em nome de uma dita coerência que não aceita o menor desvio, sendo, pois, uma falácia que serve apenas como cortina de fumaça para a não possibilidade de ouvir o outro lado ou aceitar discordâncias.
A arrogância se mostra nos comentários do tipo “você não pode escrever isso”. Na mente dos insatisfeitos, eles entendem que são eles os detentores da definição do que pode ou não ser escrito pelo outros. São os sommeliers de conteúdo, os fiscais das normas do que pode ser ou não falado. Claro, de acordo com a própria régua, impondo a fórceps sua visão restrita.
Uma outra vertente da arrogância aparece ao se insinuar que o escritor torcedor do time “deve satisfações à sua torcida”. Para estes, a ação dos outros devem bater continência a eles, mesmo que o objeto da escrita tenha como alvo tema alheio ao seu, que não lhe diz respeito. Pede citação ao que não lhe compete nem lhe cabe.
Nem tudo é sobre você, amigo. Você não é o centro do universo. O mundo não gira ao seu redor.
O brinde final à infantilidade e à arrogância está no desconhecimento que exagera ao dizer que “só um torcedor rival pode escrever algo assim”, projetando no outro uma própria limitação.
Está escondida nesta última afirmação o maior elogio que um escritor pode receber para um texto sobre o rival.
Isto se dá porque quando o escritor escreve um texto, sobre o rival, sobre seu próprio time ou sobre qualquer outro, ele procura se transpor para a realidade daquela equipe – ou momento, ou história, o que seja – que ele quer retratar. Este entendimento tem que estar óbvio num bom texto: quem é o narrador?
Por exemplo, no texto sobre as campanhas afirmativas do Bahia, eu busquei observar o que ela significava pelos olhos de um torcedor, ora, do Bahia. Não me propus em nenhum momento a fazer média com o Vitória, muito menos propor similaridades e traçar comparativos. Por um motivo simples: o texto era sobre o Bahia, não sobre o Vitória.
Daí que quando um torcedor revoltado diz “para escrever aquilo é preciso ser torcedor do Bahia”, eu, como escritor, tenho apenas que agradecer o elogio. Porque eu consegui atingir exatamente o objetivo proposto. Quem escreveu o texto não é foi o Gabriel torcedor do Vitória; foi o escritor Gabriel que buscou olhar para o caso pelos olhos dos torcedores do Bahia.
Tem mais um item interessante de se observar e voltamos ao tema da falta de inteligência emocional. Aquela voz interna que diz, consciente ou inconscientemente, “eu queria que este texto fosse escrito para o meu time”.
E eu entendo que é justamente esta frustração que gera tanta celeuma.
Como o momento do Vitória favorece o extremismo
Ao mesmo tempo, o movimento tenebroso do Vitória exacerba insatisfações. Tudo parece estar fora da ordem no rubro-negro.
São sucessões de presidentes incompetentes. Afastamento e deterioração do clube com a torcida. Um time em campo que desonra a história da instituição mais que centenária. Perda de hegemonia local de maneira um tanto vexatória. Eliminações para equipes de terceira e quarta divisões do futebol, merecendo a derrota. Uma nova gestão que, de um lado, aumenta a esperança, mas do outro distribui impropérios que flertam com um atraso deplorável.
Seria hora, portanto, de união total.
Neste cenário, qualquer mínimo questionamento, por mais fino ou fictício que seja, vira uma “traição”. Assim, um torcedor do Vitória escrever sobre o Bahia seria reduzir ainda mais a já abalada autoestima rubro-negra.
Neste sentido, tenho somente a oferecer o meu mais profundo afeto. De verdade: eu entendo. Entendo e respeito.
Mas tem condições para tal. Eu não posso deixar de lado o aspecto profissional e deixar de escrever aquilo que considero importante como produção de literatura sobre o futebol. Ser levado por fatores externos que fogem ao tema central dos artigos produzidos seria, sim, comprometer a integridade do texto. E isto é um crime para a reputação de um escritor. Além do mais, seria deixar o clubismo ser mais forte que o profissionalismo.
A falácia da imprensa “comprada”
Torcedor adora ver clubismo na imprensa. No RJ, convencionou-se chamar as mídias de FLAPRESS. A ESPN é tratada constantemente como eSPn, enfatizando São Paulo, tema central de muitas de suas transmissões.
Efeitos paralelos são percebidos. O Fortaleza passou a ser “o time de Rogério Ceni”. O Nordeste é desprezado pela grande mídia. Mesmo os times do Sul reclamam do favorecimento às equipes de Rio e São Paulo.
Esta lógica retroalimenta questões de mercado. Produz-se mais conteúdo para este público porque é este público que mais consome o produto. E isso gera o dilema Tostines: o que veio primeiro?
Mas esta avaliação é válida quando se extrapola fronteiras, quando o território se expande. Não é verdade no cenário local.
Na Bahia, jornais, rádios, televisões, portais – escolha o seu – são chamados pejorativamente de Sarda Press. Dizem eles que o Bahia é sempre favorecido pelo conteúdo.
Sinto muito informar, mas isto está longe de ser verdade.
No Correio, único caso em que posso falar com conhecimento de causa e maior veículo de comunicação do estado, a proporção de torcedores do Bahia e do Vitória é mais ou menos a mesma que se vê por aí. Há nomes conhecidamente rubro-negros, como eu, o magnânimo Paulo Leandro – que escreveu crônica lida recentemente ao vivo no mesmo Redação SporTV pelo André Rizek sobre o título do Bahia em 88 – João Galdea, Alexandre Lírio, e mais outros e outras; Do lado tricolor, Miro Palma, Ivan Marques, Herbem Gramacho, Nanda Varela, André Uzêda e mais tantos outros e outras.
Não existe este negócio de Sarda Press – mesmo que você puxe do histórico a capa emblemática da final da Copa Brasil perdida pelo Vitória em 2010.
Relembremos a questão da consistência que não aceita tropeços que abordei anteriormente: ela não existe.
O termo Sarda Press é pejorativo não apenas no reducionismo de quinta série do Bahia à alcunha de sardinha (obrigado, Joel) (e se você chama de sarda, não se rete quando chamarem de galinhas fujonas, ok?). Mas desmerece o trabalho de profissionais que se empenham enfaticamente justamente no outro sentido.
O efeito torcedor é exatamente o oposto do que conclama o senso comum. Torcedores de um time tomam precauções ainda maiores – muitas vezes comprometendo a qualidade do texto produzido – para não parecer enfatizar demais sua própria equipe. É uma espécie de compensação reversa.
Tomo como exemplo justamente as minhas colunas no Correio.
Antes, uma informação para compreensão. Eu sou colunista do Correio. Eu não sou colunista do Vitória no Correio. Existe uma diferença gigantesca entre uma coisa e outra. Escrevo sobre o Vitória, sobre o Bahia, sobre os dois, sobre o futebol baiano, sobre o mundo da bola. Sobre o que eu quiser.
Deixo para ser colunista do Vitória no Arena Rubro-Negra, encabeçado por gente da mais alta qualidade , onde somente este viés é permitido, por motivos óbvios.
A pauta da minha coluna é integralmente definida por mim. Nunca houve qualquer intervenção, nem “não pode”. Tanto pelo contrário. Eles aceitam minhas ideias e projetos e embarcam comigo com entusiasmo. Aceitaram minha série sobre a Copa do Mundo (que virou livro), aceitaram minha sugestão dos textos sobre o Vitória na Série B (Diário da Série B, que também está no Arena). Aceitaram uma nova série especial para a Copa América.
Nessa linha, quem propôs o texto sobre o Bahia fui eu. Não houve, nem desta vez, nem em nenhuma outra, qualquer senão. E sabe por quê?
Primeiramente, porque eu sou fã das ações afirmativas do Bahia. Todos os comentários no texto são fatos, não elucubrações.
Depois, porque, na mesma linha da compensação, meus últimos artigos publicados no Correio foram focados no Vitória. Eu concluí que era hora de falar sobre o Bahia e sobre um tema que considero fundamental e que está em alta.
Então por que os textos sobre o Bahia aparecem mais?
Não é a primeira vez que escrevo sobre o Bahia no Correio. Aliás, longe disso. Escrevi, por exemplo, uma crônica sobre o título da Copa do Nordeste em 2017 que circulou bem. O artigo da final do Campeonato Baiano deste ano foi meu.
Só que a crônica do salvamento do rebaixamento de 2017 foi minha, como foram muitas sobre o clube neste período. No dia 13 de maio, no dia dos 120 anos do Vitória, o artigo de aniversário foi meu, sendo convidado a escrever numa semana que não era, em teoria, minha.
E sabe porque as tricolores correram e as rubro-negras não?
A resposta está na comunicação dos clubes.
Os textos do Bahia circularam porque o clube, com um propósito de comunicação mais amplo, moderno e correto, compartilhou os links em suas redes. Esta postura de incentivo à circulação de conteúdo cria uma legião de torcedores muito mais engajados. Observe, por exemplo, os comentários gerados nas grandes mídias quando envolvem Bahia ou Vitória. Quem mais comenta mais nos textos sobre o Bahia? Torcedores do Bahia. E quem comenta mais sobre os textos do Vitória? Também são torcedores do Bahia.
Do outro lado, a comunicação do Vitória não gera conteúdo nem compartilha o que é gerado sobre o clube. Age para silenciar repercussões positivas. Desestimula interação da torcida. Com a nova diretoria, exige fidelidade incondicional e refuta qualquer crítica diante dos óbvios mal-feitos que já se instalam no alto comando do Barradão.
Então, sinto informar: a percepção de haver uma tal Sarda Press acontece especialmente porque os clubes agem para tal. O Vitória, ao não produzir conteúdo nem compartilhar aquilo que lhe é vantajoso; o Bahia, ao fazer rodar o que lhe engrandece, seja próprio, seja de terceiros.
Não é que haja mais peso de um lado. Você não vê o que é referente ao Vitória porque o Vitória não sabe se comunicar e esconde o trabalho que lhe enaltece, reduzindo o alcance.
Liberdade de expressão não pode ser cerceada
Este artigo ficou bastante longo. Reconheço. E agradeço por você ter chegado até aqui. De verdade. Tudo isto serve a dois propósitos: explicar e refletir.
Ao fim ao cabo, existe uma premissa que permeia toda produção de conteúdo: liberdade de expressão.
Toda tentativa de cerceamento da liberdade de expressão deve ser enfaticamente combatida. Quando alguém diz “você não pode dizer isso”, desde que a fala não seja um crime ou que expresse intolerância, está agindo para tolher a liberdade de expressão do outro.
Isto é, no meu conceito, intolerável.
Disse um nervoso num e-mail que “fair play tem limite”. Respondi que, para mim, fair play não tem limite. Trata-se de visão de mundo, cláusula pétrea da minha Constituição.
Assim, buscando o máximo possível de integridade, não passo pano pra absurdo e elogio o que vale a letra.
Desta maneira, se você quiser ler apenas o que lhe agrada, o mais recomendável é se reduzir a mídias que garantam isso. Talvez a pluralidade não seja muito a sua praia. O que é péssimo, pois reforça o viés de confirmação e provoca estagnação sociológica, abordados na abertura deste artigo.
Existem muitas realidades, histórias distintas, trajetórias cheias de detalhes que as tornam únicas. Exercite a empatia. Interaja com o diferente. Relacione-se com o que não é seu. Sua verdade é apenas sua.
Não me convide para caminhar rumo ao atraso com você. Negarei veementemente tentativas neste sentido. Nem me inclua nestes campeonatos de quem é mais torcedor que o outro. Quer se autoproclamar torcedor modelo, Vitória até a morte e afins? Vai lá, mas vai sozinho. Afinal não sou menos torcedor porque me dispus a escrever sobre o rival.
E jamais, sob nenhuma hipótese, aceitarei ter minha liberdade de expressão atacada e tolerarei falta de respeito. Aí, meu amigo, operaremos em trincheiras opostas. Seja você Vitória, Bahia ou qualquer coisa.