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Está pronto

Está pronto

Marcelo estava preocupado. Há uns três meses ninguém ouvia do João. Tentou, primeiro, mensagens por Whatsapp. Mandou email. Ligou. Até SMS mandou, porque, no desespero, tudo deve ser tentado. Mesmo tendo João avisado que seria sempre ele a entrar em contato, três meses era demais, ele havia de convir.

Recebeu um bilhete de um menino de rua enquanto tomava um café no fim de tarde de um dia de semana, qualquer feira.

Nele, apenas dizia:

“Está pronto. J.”

Reconheceu a letra do amigo escritor. Olhou em volta à sua procura, nem ao infante mensageiro avistou. Pagou a conta correndo e seguiu ao seu apartamento, já à noite quando chegara, para encontrá-lo vazio.

– Xi… Seu João faz bem uns 3 meses que não aparece, seu Marcelo. Quem advertiu foi o porteiro, assim que pediu para subir ao 101.

Não fazia ideia de onde poderia estar o amigo.

Tinha a chave e, liberado, escalou as escadas em espiral ao primeiro andar. Não havia elevador.

Um longo corredor dava acesso às 12 unidades, e ao final, reconheceu a entrada. Porta de folha de compensado, estufada na barra inferior, sem nenhum detalhe que lhe destacasse, nem olho mágico, nem número.

Virou a chave, vagaroso. Ao abrir a porta, foi recebido por um soco de inabitabilidade em todo seu corpo. Acendeu a luz, que iluminou um ambiente inóspito. Cheiro pesado de podre. Janelas fechadas por cortinas uma vez brancas de pano pesado. Tinta que descascava nas paredes cheias de manchas e pedaços de papel decorativo que se descolavam.

Na sala da casa havia uma mesa antiga de madeira com duas gavetas de puxadores de bronze vitorianos, cheia de lascas, uma cadeira também de madeira, um tanto bamba quando tocada, uma luminária com uma lâmpada queimada, que, ao tentar ser acendida, ainda provocou um pequeno curto e derrubou a chave geral.

Conhecia bem o apartamento. Caminhou tateando ao quadro de luz, sem que houvesse algo no caminho que o obstruísse. Religou o disjuntor desarmado. Acendeu a luz, ainda na cozinha. Uma geladeira velha fazia um zunido constante que o incomodou. Não quis explorar seu conteúdo. No fogão, uma panela de arroz com fungos, uma frigideira com uma crosta de gordura e um pedaço de carne indecifrável, e papel laminado a proteger da sujeira que se espalhava grudenta em tudo o que se mostrava superfície. No canto, o lixo acumulado se desenhava morada de formigas e baratas.

Um pequeno espaço para área de serviço, a máquina de lavar com uma troca de roupas dentro, um balde com um pano imundo nadava numa solução de esgoto com qualquer coisa, uma única cueca pendurada no varal de teto, junto a um par de meias, que se foi lavado, deve ter sido na mesma água do balde.

Voltou à sala.

Num canto, um rádio antigo, daqueles de dial giratório. Ligou, apenas estática se ouvia. Reparou na antena quebrada jogada do outro lado da sala, camuflada na poeira.

Tanta poeira, que mal se podia respirar.

No quarto, um colchão de solteiro sem lençol, um edredom rasgado no chão, um travesseiro amarelado de espumas recortadas, como se retalho. Um guarda-roupas vagabundo de duas portas tinha uma delas caída, dentro, solitário, um tênis carcomido. No banheiro, uma toalha azul manchada de água sanitária jogada sobre a tampa do vaso sanitário aberto, a ponta encostando na água verde cercada por uma grossa camada de muco. Um rolo de papel higiênico solto criava caminho no chão, como se passarela. Uma cortina com mofo nas extremidades, com passadores rasgados e ganchos soltos anunciava que tentar não molhar o lugar era inútil. Separava o espaço de banho, sem chuveiro, apenas um cano de PVC exposto e raspas de veda-rosca. O ralo aberto aumentava a náusea, e nada havia ali além de um sabonete com alguns pelos grudados tentando mascarar o cheiro do ralo, a quem fazia companhia. Azulejos, quando havia, trincados.

Na pia, com uma torneira destas antigas, uma escova de dentes repousava na bacia. Girou-a, mas água não saía, talvez cortada. No armário de metal logo acima, escancarado, um espelho manchado nonde mal se via o próprio rosto, o interior de plástico distorcido e uma outra escova pendurada, ainda inutilizada. Notou o canto quebrado do espelho e uma mancha vermelha, que instintivamente imaginou ser sangue.

Voltou à sala.

Olhou em volta, sentiu um pouco de frio e um muito de pena.

Reparou na gaveta da mesa entreaberta.

Puxou-a com cuidado, temeroso do que pudesse encontrar, embora impossível seria deparar-se com algo tão provocador quanto o ambiente em si. Nela encontrou uma resma de papel, meticulosamente amarrada com barbante e hermeticamente fechada em um saco plástico com fecho.

Era recente.

A pureza e brancura e zelo do manuscrito eram ainda mais gritantes quando contrastados com o entorno. Reconheceu as letras datilografas em uma Olivetti de fita dupla, brinquedo de estimação.

Correu o fecho com desvelo, sacou-lhe o volume de dentro, no que um outro bilhete escorregou da capa que continha apenas o título e o “J.”. Apanhou-o do chão, limpou as pontas dos dedos na calça jeans. Ajeitou-lhe os óculos.

“Para publicação. Não se preocupe: o que existia de J. se esvaiu. Fui sugado ao que se vê em suas mãos. Tal qual um Kafka niilista, nem barata me vi ao acordar, senão o nada. Se, então, nada sou, nada haveria de acrescentar. Logo, pronto! Sigo agora na busca de mim, para imputar-me metamorfose em outrem, e recomeçarmos, eu e minha Olivetti, um novo enredo do que será tormenta até que manuscrito.

J.”

Marcelo sorriu com resignação. Saiu, trancou a porta atrás de si e pôs-se novamente a esperar mais alguns meses pelo próximo bilhete.

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