Mais que vinte. Não consigo me recordar quando foi a última vez que fui a Mutá, mas, em anos, fez mais que isso, até o regresso, no fim de 2015. Minha vó lá tinha casa, onde veraneávamos. Não pense, ó, incauto, que era luxo. Não senhor…
Os interruptores eram fios desencapados. Era juntar um no outro fazia-se a luz, sempre acompanhado de muitos choques. Aquele sacolejo para acalmar a criança. Os colchões cheiravam mofo. Mosquiteiras sobre elas, denunciando que repelente não tomava jeito. Não havia TV, nem rádio. Ou era espiar pela janela do vizinho, ou nada feito. O piso, diria tentando trazer um ar de avanço ao local, era de cimento queimado. Morcegos faziam morada quando casa vazia, dividindo espaço com aranhas. Poeira.
Não esquece de empacotar e fazer estoque de sabonete e xampu, porque água era de cisterna. Era a água do banho, da comida, de tudo quanto era necessidade. Era limpa a água, pois não!, imagine o benefício que o tanto de sabonete não causava para a assepsia. Se um banho da família se fazia com um único sabonete, economia na certa.
De Opalão, meu avô foi o primeiro a levar as mudernáge para a Vila, lás pelos idos do final dos anos 60, começo dos anos 70. Desbravador das terras, colonizador da capital. Deve ter rabo de olho atrás dele até hoje. A Vila de Mutá seguia na velocidade que aguentava o lombo do burro.
Saindo de Salvador, pega-se o Ferry Boat, segue-se para o terminal de Bom Despacho (nomes sugestivos é com a Bahia mesmo). De lá, carro na estrada, atravessando a ilha, cruzando de volta pro continente. Se não mexeram muito na estrada desde então – tem buraco ali que deve ter se tornado patrimônio histórico da região – também não mexeram nas praias.
Foram inúmeros os dias que menino sentava nas canoas e via a maré subir e descer…
Economia liderada pelas marisqueiras. Tudo na vila era em volta do chumbinho. Ou vôngoli, pros cabra que toma missoshiru em restaurante japonês em São Paulo. Nas calçadas, nas casas, na rua. Não devia ter brita pra fazer cimento, misturava na casca do chumbinho.
Farto! Enfiava-se a mão na areia melada de mangue e tome a achar chumbinho. Um atrás do outro.
Ali não tem onda. Até o mar tem preguiça por aquelas bandas.
Mutá é o retrato de uma vida muito mais simples. Mais descomplicada. De pequenos prazeres. De alegria no pouco.
Um sossego, uma tranquilidade.
– Tem Guaraná aí, filho? Fui eu averiguar, com a sede apertando.
– De que você quer?
Esquecido que estava, guaraná por lá ainda é refrigerante de qualquer tipo. A resposta ao menino com o isopor poderia ser, perfeitamente, Coca-Cola. Em Salvador, já desandaram a falar réfri, que espero de nunca chegue por lá.
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Começamos todos a catar chumbinho na água. Eu, meu pai, Angélica e Carolina. Batendo papo e catando chumbinho. Não faço ideia de quanto tempo ficamos na função. Tempo é relativo, fomos embora apenas quando o sol estava baixo e seria bom pegar estrada de dia. Buraco sai da mata na beira da estrada e aproveita o escuro pra se instalar no meio da pista e derrubar carro à noite.
O que era catado ia parar no meu boné. Não fazia sentido catar, afinal, que faríamos com aquilo? Era naturalmente imperativo, no entanto. Quando a mão se enchia de cair um pra guardar o outro, hora de seguir para a canoa e proceder com a armazenagem. Uma canoa na praia abrigava os nossos pertences. Muitas são as funções da canoa.
Sol baixando, visita programada a Salinas da Margarida, onde o pôr-do-sol também se cria, mas jamais mais belo.
Restava o que fazer com aquele monte de chumbinho.
No caminho de volta pro carro, crianças brincavam num barquinho atracado. Abriam chumbinhos, não sem antes tentar ouvir dentro deles para saber se estava na hora. Uma lata abrigava aqueles que levariam pra casa. Se catar chumbinho não fazia sentido, agora, ao menos, tinha destino.
– Olha aí, molecada! Pra vocês!
Falei derrubando aquele monte de chumbinho na frente deles. No que um deles respondeu, feliz e surpreso:
– Êta, mainha!
Na sua inocência, resumiu o que tinha sido voltar ao meu pequeno pedaço de paraíso.
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