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Eu só peço a Deus um pouco de malandragem

Eu só peço a Deus um pouco de malandragem

Terceiro dia de Copa do Mundo, e a zebra deu as caras. Bolões foram arruinados, sim, mas tenho cá minhas dúvidas se aqui no Brasil estamos realmente tristes por causa disso. Porque a verdade é que ver o Brasil ganhar é melhor, claro, mas ver a Argentina perder está quase ali na escala do contentamento.

Rivalidade forjada há mais de século, desde que em 1914, na extinta Copa Rocca, o Brasil sapecou 1 a 0 nos hermanos em plena Buenos Aires. A partir dali a coisa foi evoluindo pra ser o maior clássico do futebol mundial, de fazer indianos saírem na mão a milhares de quilômetros sem nem mesmo ter confronto direto, de criar debates do melhor de todos os tempos, de discutir conceitos de futebol, a garra contra a arte.

Mas a realidade é menina matreira, e brinca com nossas vontades para destrui-las ao ritmo do seu caos e da incoerência. Aprendemos a cultivar um misto de admiração e ódio pelos argentinos, sua mania de grandeza, sua paixão boleira e sua fina habilidade com a pelota. Seria muito mais fácil se a Argentina fosse um bando de Otamendis – convenhamos, um Domingos com grife –, mas aí um tal de Messi veste a 10 e haja contorcionismo.

Ok, múltiplas bolas de ouro, títulos muitos, finalmente campeão com a Argentina em 2021 em solo brasileiro. Mas a Messi falta ainda a Copa do Mundo. Não vou evocar a máxima de Fernando Calazans e atribuir azar da Copa do Mundo se Messi não levantá-la, porque é gente demais e taça de menos, e não vou eu priorizar argentino na minha piedade – é isso, modo rivalidade ativado.

Evoco, no entanto, outro atributo: a máxima de Neco. Você conhece Neco?

O fato foi levantado por meu amigo Marcone Hilton, que alia mau gosto clubístico a um excepcional gosto culinário e apurada memória. Na derrota por 2 a 1 para a Arábia, a Argentina teve gol anulado por impedimento de Messi, que foi disputar uma bola apesar de claramente fora de jogo quando a partida ainda estava 1 a 0 para a albicelete. Abrir 2 a 0 seria tranquilidade, certo? E se Messi, apesar da grandiosidade que tem, ainda não alcançou o status maior na seleção, assim o é um pouco por lances como esse. Como? Marcone explica.

Em 1994, Brasil e Holanda faziam confronto de quartas-de-final que tinha jeito de final. E foi numa bicuda da defesa que Romário fez sua mágica. Molhado e ensaboado na banheira, o baixinho mete a máxima de Neco. Você conhece Neco? Né comigo, não! Se fez de besta, fugindo da marcação do impedimento, e deixou Bebeto sair sozinho na cara do gol, para depois embalar o bebê na lateral do campo.

Talvez seja um pouco demais comparar o jeito Romário com o de qualquer outro? Talvez. Mas fica aí, pois, mais um exemplo do que difere o ludopédio de lá e de cá. Aqui nos especializamos em correr atrás de bola e fugir da polícia. Fingir-se de besta é questão de sobrevivência, parceiro. A máxima de Neco domina o dia a dia, está enraizado, é nosso. E ainda volta num repeteco na desviada da bola que se bate na bunda, não tinha gol de Branco e nem coluna que aguentasse a pancada.

Mas nem tudo está perdido para os argentinos. Estamos apenas na primeira rodada, tudo pode mudar, inclusive nada. Aos supersticiosos, segurem essa, emito um alento: estaria a Argentina, obviamente, rumo à final.

Não é a primeira vez que a Argentina se vê vítima de uma zebra histórica numa estreia de Copa. Em 1990, Camarões de Roger Milla embasbacou o mundo com suas cores e danças. Omam-Biyik fez o seu contra os campeões argentinos, avançou para eliminar a Colômbia de Higuita, Rincon e Valderrama nas oitavas e só parou nas quartas diante da Inglaterra. Já a Argentina, apesar da estreia com derrota, foi avançando até cair na final para a Alemanha.

Não desgostaria desse fim. Com a Argentina em segundo lugar no seu grupo, a veríamos terminar do lado de lá da chave. Ou seja, uma final Brasil e Argentina se torna possível. E se nela virmos os hermanos novamente vice-campeões num gol de pênalti maroto, eu até considero me compadecer e tirar esse sorriso que não sai do meu rosto de jeito nenhum.

Gabriel Galo é escritor e adora alimentar rivalidades


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Esta série de Crônicas da Copa 2022 está também no Correio da Bahia


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