O dia 6 de janeiro de 2021 ficará marcado para sempre na história americana como o dia em que o próprio líder máximo do país, incapaz de aceitar o resultado das eleições que o defenestraram do poder, insuflou uma massa armada de pseudomilicianos para marchar rumo ao Capitólio e interromper a sessão do Senado que homologaria Joe Biden como novo presidente.
Trump o fez com a premissa de estar cercado de evidências de que as eleições foram fraudadas. Só que esta postura estava sustentada em uma premissa fantasiosa.
As tais evidências, conforme extensamente abordado em toda a mídia global, eram,, pois, falsas. Inventadas por sectários sem qualquer compromisso com a verdade, tendo como único norte a reeleição de Trump, não importando o método.
Para chegar àquele momento, é importante compreender a escalada de acontecimentos.
Esgarçamento do tecido social
A chegada de um populista de extrema direita ao poder traz com ele uma metodologia de esgotamento do debate público. O primeiro mandato vem para causar desordem. O caos impera e em pouco tempo pautas arbitrárias e esdrúxulas estão normalizadas. Este é o intuito: trazer o espúrio para perto, esticando a corda cada vez mais para o extremo.
Isso somente é possível com o esgarçamento do tecido social. Suscitar medos é provocar reações meramente intempestivas, aniquilando a racionalidade.
Reeleição e consolidação
O passo 2 é a reeleição. Com isso, déspotas populistas aproveitam para implantar um pacote de maldades que tem como elementos o cerceamento da liberdade de imprensa e de expressão, federalização das forças policiais com poderes de milícia e excludente de ilicitude, aumento do Supremo Tribunal Federal, prorrogação de mandatos executivos, redução ou até mesmo fechamento do Congresso. A lista é longa e segue a cartilha exata que ensinou líderes populistas autoritários como Viktor Órban, da Hungria, Recep Erdoğan, da Turquia, Vladimir Putin, da Rússia, e até mesmo do duo Hugo Chávez e Nicolás Maduro, da Venezuela.
Mas Trump não teve tempo.
Reação, união, conexão
As instituições americanas, mais sólidas, reagi-ram. Com vigilância redobrada e amplo trabalho de base, de conexão com os eleitores, a superficialidade malévola de Trump foi ficando mais evidente àqueles que se cegavam aos horrores do presidente em nome de alguma interseção entre crenças pessoais e as barbaridades proferidas.
E as pesquisas indicavam uma derrota avassaladora para a chapa Democrata formada pelos senadores Joe Biden e Kamala Harris.
Agosto de 2020
Numa entrevista a Jimmy Fallon no The Tonight Show em agosto de 2020, o senador democrata Bernie Sanders, indicou o que se daria no dia da eleição, 3 de novembro, quando os votos enfim seriam contados. Dadas as decisões sobre a contagem de votos pelos Correios, que somente poderiam se dar depois de encerrado o horário de votação, e dado que os eleitores por Correio seriam majoritariamente democratas, enquanto aqueles que tenderiam a votar presencialmente seriam, talvez, majoritariamente Republicanos, Sanders anteviu que “é possível que às 22h, Trump esteja na frente e diga que venceu, que a eleição acabou. E que nos dias seguintes, com a contagem dos votos pelos correios, seria ultrapassado e diria que as eleições foram fraudadas.
Visionário. Ou, como é melhor analisar, alguém que juntou os pontos que o cenário mais provável indicava.
3 de novembro de 2020
Na noite das eleições, Trump realmente aparecia inicialmente na frente nos estados-chave (os chamados swing states). Mas Sanders não poderia estar mais correto. Dois dias depois publicou um tuíte risível, mas indicativo do que ele queria fazer:
A contagem não parou, obviamente. E o que se viu foi o esgarçamento ainda maior das relações.
Eleições fraudadas
A retórica foi resumida a isso nas semanas seguintes. Os fanáticos apoiadores, alimenta-dos por uma cadeia de fake news tinham seu ódio crescentemente mais exacerbado. Para eles não havia dúvida, porque se o líder diz, verdade é: as eleições foram fraudadas.
Esta retórica criou uma situação contraditória surreal.
No Arizona, apoiadores do presidente se deslocaram aos locais de contagem de votos para garantir que a apuração continuaria; em outros estados como Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Geórgia, se aglomeraram nas portas dos locais de contagem pedindo para parar a contagem.
Contradição apenas aparente. É preciso entender a mente dessas pessoas. Para eles há uma premissa superior: as eleições foram fraudades e Donald Trump era o vencedor. As manifestações, portanto, não são contraditórias entre si, mas sim perfeitamente alinhadas. Elas serviam para fazer valer o resultado ‘correto’, qual seja, a eleição de Trump.
Judiciário
O governo, então, passou a apelar às vias judiciais para alterar o resultado da eleição que, neste momento, estava definida a favor de Joe Biden.
Sucessivamente, as petições do governo eram rechaçadas, seja por tribunais estaduais, seja pela Suprema Corte. Este último caso gerou, inclusive, uma crise institucional na Casa Branca. Para o presidente, era inaceitável que um juiz ou juíza votasse contra quem os havia colocado na cadeira da corte mais alta do judiciário.
Os processos eram negados sem cerimônia. Em uma audiência, a juíza, sem paciência para a ladainha trumpista, pergunta ao advogado do governo qual a base da denúncia, para ouvir como resposta nada além de uma atrapalhada tucanização do “ouvi dizer.”
Ridículo
Enquanto as ações eram derrubadas uma a uma na esfera jurídica, a entourage trumpista mostrava a extensão da sua incompetência.
Entrevista coletiva foi marcada no estacionamento de uma casa de jardinagem homônima da rede de hotéis Four Seasons, entre um sex-shop e um crematório.
Depois, Rudy Giulliani, o bufão advogado do presidente, apareceu com a tinta de seu cabelo escorrendo pela face suada, numa cena tão patética quanto triste.
Apelo final
Restava nas mãos de Trump uma única possibilidade: acelerar o golpe de estado, planejado para ser feito de maneira branda num segundo mandato.
Convocou, então, seus apoiadores para participarem da March to Save America (Marcha para Salvar a América) em Washington, D.C., no dia da certificação de Joe Biden pelo colégio eleitoral.
O pedido foi atendido.
A multidão – que não teve qualquer membro infiltrado da Antifa, um devalenio alucinógeno de parte da imprensa chapa branca brasileira – compareceu. Ansiosa por ter, enfim, o protagonismo que os filmes de herói tanto prometem.
Adendo
Na série “The Crown”, o Príncipe Charles conversa com Camilla Parker sobre um livro que leu e como ele abordava porque as pessoas se alistavam para ir a um confronto com morte garantida. “Esse é o tanto que as pessoas precisam de um propósito”, disse ele. Esta foi a oferta de Trump à massa: propósito.
6 de janeiro
A horda marchou para “salvar a América”. A Guarda Nacional se recursou a fornecer proteção. Cenas de terror e destruição foram vista dentro do Capitólio.
Mas as Forças Armadas americanas se recusaram publicamente a participar. Esta ausência tentou ser convertida por Trump no discurso, conclamando as forças de segurança a marcharem junto com o “verdadeiro povo americano”.
O golpe não vingou. Mas, do Brasil, Bolsonaro observava com atenção os desdobramentos da empreitada fascista de Trump. E tem em mente a fórmula para conseguir.
O que faltou a Trump
A visão de Bolsonaro sobre os erros de seu ídolo se concentra em dois itens que tenta corrigir.
Está no repúdio público das Forças Armadas o primeiro ponto fraco que Bolsonaro não quer repetir.
No coldre, carrega as carabinas que viabilizaram o golpe chileno. Sabe bem ele o quanto a capilaridade de uma polícia que tem, assim como ele, pulsão de morte, pode levar de benefícios para um rompante autoritário.
O segundo ponto é que, talvez, Bolsonaro entenda que Trump ficou ‘mole’ demais.
O presidente, quando pressionando pela quantidade assustadora de mortes pela Covid-19 em seu mandato, pelas ameaças de prisão, pelo impeachment aberto na Câmara, abandonou a verborragia. Ser banido do Twitter contribuiu para amainar a horda, que vai sendo, uma a uma, reduzida pela via legal, com prisões dos terroristas que participaram do ato.
Bolsonaro segue para preencher as lacunas de Trump e levar a cabo o seu plano – único deste governo.
Compra apoios no Congresso para evitar uma versão brasileira de Nancy Pelosi.
Mantém a verborragia ao máximo, a defesa irracional da cloroquina, os xingamentos e derrubadas de acordos de relações internacionais, enquanto mina por dentro a democracia como um todo.
E, sobretudo, agrada as forças de segurança, sedentas por uma mamata para chamar de sua.
Este talvez o elemento mais assustador quando trazemos os eventos do dia 6 de janeiro para a realidade brasileira.
A democracia brasileira é muito mais incipiente que a americana. A oposição inexiste e bate cabeça querendo conversa somente com os iguais.
Ignoram os sinais do trabalho de base americano e deixam o presidente fazer o que quiser, enquanto os menos escrupulosos fazem a Janaína e viram os olhos como se não tivesse nada pra ver.
“Ah, o Presi, esse danadinho.”
Bolsonaro olha para os EUA e pensa, do alto de sua ignorância tóxica: “ei, esse golpe eu consigo dar”.
Povoa o governo civil de militares tão ineptos quanto ele. Costura explicitamente os detalhes de sua insurgência, para quem quiser ver. Aparelha o que pode, implode as estruturas de contrapeso, para não ter qualquer reação contrária além de infames notas de repúdio.
Os EUA de 6 de janeiro são o Brasil amanhã. Mas aqui há mais chances de o golpe dar certo.
Artigo para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 14 a 19.
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