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Fartura era um pote de metal

Fartura era um pote de metal

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Houve uma época, tão antigos quanto a virada do século, mas ainda mais forte nos portentosos anos 80, em que a uva passa não era a grande vilã do Natal. A grande vilã era a tal da economia. Tudo era pouco, mínimo era regra. Felizes aqueles que tinham como garantir o peru de natal, porque para tantos o máximo era um frango assado com farofa – porque tudo na Bahia é banhado de farinha. A inflação galopante, os preços imprevisíveis, o dinheiro que nunca era suficiente. Até passas eram um luxo, vejam só. Passas eram sinônimo de vitória e de sucesso, assim como lentilha possui o gosto do desgosto – mas não tratemos de outro feriado quando o assunto é o Natal, deixemos o Ano Novo para seu próprio solilóquio.

As latas de metal surgiam na época do Natal e tomavam conta de área restrita dos supermercados soteropolitanos. Tinham de duas especialidades: a residência dos biscoitos amanteigados “importados” – se tanto, apenas a receita era, mas com uma boa dose de tropicalização de ingredientes; e o suprassumo da ostentação natalina, o recipiente de queijo tipo Reino, aquelas bolas de casca roxa e interior deliciosamente amarelado.

Era sabido: o ano tinha sido bom se tal lata surgisse ornamentando armários de compensado farelento ou metal corroído. Ocupava local de destaque, metamorfoseando-se em único item de decoração de cozinha espartana. Era quase necessário expô-la para as visitas, símbolo de poder e nobreza, como não. Eram objetos de atração da inveja alheia, para regozijo dos anfitriões, “Olha, eles têm lata de metal… Devem estar bem de vida!”

Lá em casa tínhamos a tal lata, uma vez morada de pretensamente deliciosos biscoitos amanteigados – queijo tipo reino estava fora de nosso alcance. No porão de minha memória, o dilema do ovo e a galinha se recompõe em “quem veio primeiro, a lata ou o biscoito?” Porque dos biscoitos (cof, cof) importados não lembro, nunca vi nem comi. A lata, no entanto, tomava assento, raramente armazenando algum item, porque não sedava o ar, afofando biscoitos, bolachas, torradas e afins em poucas horas para que se perdessem em maçarocas desconfortáveis formando ruma no céu da boca, retirada com o auxílio de unhas e tampas de caneta Bic. Havia, no entanto, farelo. Se era farelo do item original ou dos alternativos, estamos falando trabalho de grande trabalho investigativo.

Criança, eu molhava o dedo na língua e raspava o fundo da lata procurando uma essência qualquer de sabor do néctar divino – com o tempo a gente apura o paladar e ressignifica a ambrosia. Acontece que estamos falando de Salvador e sua impassível maresia.

Se beirais, varandas, janelas e quaisquer metais ao tempo são alimento para a maresia impiedosa, as latas de antanho eram tipo água para um sedento. Talvez fosse questão de minutos: as bordas enferrujavam, assaduras ocres tomavam conta da pele da lata tal qual doença contagiosa, como queimaduras com feridas abrasivas que se espalhavam por dentro e por fora daquele pote trabalhado na significância de status, significância esta extraída de qualquer coisa tinha que implicasse sucesso, mesmo onde o tosco expusesse mais a fragilidade que a desenvoltura.

Era nesta lata redonda e funda em que a ponta meu dedo lambido varria os farelos na esperança por um quê de açúcar, por um alento de manteiga doce, por um quase nada de sabor. Em quase todas as vezes, porque a lata era a mesma e a capacidade de interpretação de contexto de criança era nula, nada vinha na ponta enlameada a não servo resto seco de um pão velho que virou torrada no forno já há tempos consumida, com fortíssimo gosto de corrosão.

Eu era, então, a cara da decepção.

Ela continuava ali, altiva, sublime, colorida, a lata de biscoito, descartada somente quando buracos romperam-lhe o exoesqueleto. Formava com o galho de Natal um recital triste de quem buscava, por menor que fosse, uma indicação de que pra frente era que se andava.

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