Não, o mundo não parou. A pandemia segue seu rumo sem freio num Brasil em que o negacionismo é regra, e a pulsão de morte dita as ações do governo. Mas vez ou outra, precisamos fazer uma pausa. E no faz de conta, a gente pausa as lamúrias de uma época terrível, interrompe o trabalho de aprofundar questões atualíssimas para focar numa temática única, embora muitas e infinitas dentro dela mesma: SALVADOR. A velha cidade da Bahia. A Soterópolis. A cidade que me viu nascer, e fez nascer tantos de fora que nela pisaram e plantaram os pés na boa terra, deixando raízes novas.
Está no meu “Conto aos 7 anos de um vivido”, do meu livro “Não aperte minha mente”:
“Mas de nada vale, hoje vejo, ser-se de algum lugar e não praticar. Origem é também questão de prática.”
Assim, é de Salvador quem pratica. Retornaremos a isso no avançar das páginas desta revista, como referência aberta em texto meu e na ingresia sertânica de Franciel Cruz, e implícita na forma de se olhar e viver a cidade.
Não cometerei, contudo, o impropério de tentar resumir Salvador. Não e nécaras. As vozes e histórias descritas aqui em linhas mais cheias de sobe-e-desce que o relevo da cidade são recortes de uma gente que não é única, porque impossível, mas que transforma cada dia na cidade numa fonte inesgotável de boas histórias. Logo, esqueça essa história de resumo, de levantar o dedinho na indignação seletiva na base do “Salvador não é só isso” porque isso já está cristalino. Posso ser besta, mas não a ponto de rabiscar o impossível. Então segure sua onda e embarque nessa desarmado.
Mas, sim, Salvador. Neste 29 de março, a Cidade da Bahia completa 472 anos com corpinho de 350. Ou seria 380? Nunca sei ao certo. Chutaria que está nessa faixa entre 300 e 420. Pelaí. Ou não.
E para olhar para a cidade, vou às margens da descrição ufanista de templos sagrados da cidade. Em vez de loas à Colina Sagrada – Ajayô, meu Senhor do Bomfim! – ao triunvirato dos Faróis a delimitar fronteiras da urbe, Barra-Itapuã-Humaitá, vamos saltar com a molecada da Ponte do Crush.
Aliás, o que se pensa quando se fala em Salvador?
Pois: Carnaval.
Se Salvador é Carnaval, trago no coldre a máxima de Gerônimo Santana, autor de “É d’Oxum”, hino oficioso da cidade – ali um corpo na frente de “Raiz de todo bem”, de Saulo, conforme li num tuíte de Franciel Cruz:
(O Carnaval) Antigamente era desorganizado, mas éramos felizes. Depois, chegou a organização e lenhou tudo.”
No que eu, herdeiro de sangue revolucionário de pai que fugiu da polícia, com esta descendo porrete em estudantes que se aliavam ao partidão para quebrar as estruturas da Ditadura e fazer valer a revolução, nunca fui muito chegado a clichês e senso comum. Tem DNA do contra formando a criatura, saca? Não fosse assim não rumaria vida para buscar viver de letras. Seria apenas um mais, sem nem direito a estatística, um borrão humano, cumprindo o ritual cíclico da vida ao nascer, crescer, estudar, reproduzir-se, contrair dívidas, obedecer sem reclamar, gratidão até pelo que faz mal e morrer sem importância, vulto esquecido quando a voz não se forma em memória aos que ficam, que estarão repetindo o ciclo, afeitos a suas próprias, parcas e porcas ambições.
Além disso, a Papo de Galo_ revista #11 e seu Suplemento foram dedicados ao Carnaval, com muito de Salvador, com direito até a abestalhamento de Charles Darwin quando calhou de fazer estada por estas bandas há coisa de 200 anos e trombar com o Carnaval do entrudo pelas ruas da Cidade da Bahia. Então, vamos deixar o Carnaval um tantinho de lado – com a sua permissão, amado e idolatrado leitor, querida e venerada leitora.
***
Embora sem o Carnaval, a música é central em Soterópolis. Nessa toada me embrenhei em papo com Ricardo Caian, músico da melhor qualidade que se mete pelo Brasil todo compondo, tocando, cantando, produzindo e mais o que envolver música.
No campo da fotografia, é a mim automático ser levado a Pierre Verger. Mas me perco numa nova leva de fotógrafos baianos, como Pedro Nunes, Rafão, ou Tiago Quirino Troccoli, do Instagram @soterografando, este último um herdeiro da visão antropológica do francês naturalizado baiano – assim como Carybé um dia também se naturalizou. Ambos, Verger e Carybé, primeiro baianos, depois brasileiros – este segundo com baixa ou nenhuma relevância. Negócio é ter o documento para se dizer baiano, sim, senhor, não apenas pela arte e pela vida imersa de baianidade, mas de papel passado, registro e carimbo para não dar brecha para questionamentos impertinentes.
E ao se expandir a arte para outras formas, apesar de Bel Borbas, Marios Cravos et caterva, direciono olhar para Arizinha Souza, mulher, negra, artista e empreendedora que já fez e faz DIUMTUDO, vive de seu dom e acorda todo dia com a correria de entregar pedido no varejo.
Arizinha é o fio condutor dessa revista para a imagem de um ensaio meu aqui exposto, e que sai em partes dia 29 no Correio. Salvador é uma mulher negra que dá vida à multitude de gentes transitando pela frenética urbe. Salvador é mãe. Salvador é d’Oxum.
No que Carybé pintou o quadro que representa, do meu ponto de vista, como a cidade se muta em mulher: A grande mulata 3.
O antropólogo Vagner Gonçalves da Silva publicou na edição #10 da Ponto Urbe, revista do núcleo de antropologia urbana da USP, em 2012, artigo intitulado “Artes do axé. O sagrado afro-brasileiro na obra de Carybé”. Nele, Vagner tem por objetivo analisar a presença do sagrado afro-brasileiro na obra de Carybé. E ele dedicou análise específica para o quadro “A grande mulata 3”, cujo trecho se lê abaixo:
“No quadro (…) intitulado A grande Mulata III, vê-se uma composição semelhante com a do quadro anterior, “Bahia”, do ponto de vista dos temas que o compõem. No primeiro plano, a oferenda de farofa para Exu esta sendo preparada. À direita, abaixo, Oxum paramentada de amarelo e com seu leque à mão, conversa com um provável São Jerônimo devido ao leão que o circunda. Mas ele também é Xangô, que gosta de se vestir de vermelho e tem o leão como símbolo de sua realeza africana. Seu machado bifacial encontra-se aos seus pés. Acima de Xangô, aparece Exu com seu ogô (porrete fálico) sobre os ombros e chapéu em forma de gorro pendido para trás. À esquerda uma mulher nua de seios grandes (Iemanjá ou Oxum?) se mira no espelho. No último plano, um saveiro e o mercado vermelho de Santa Bárbara–Iansã se destacam. Capoeiristas, marinheiros, mulheres conversando, cenas de boemia num bar, entre outros motivos, preenchem os demais planos da tela. Mas desta vez Nossa Senhora foi deslocada para a esquerda. Em seu lugar, central na outra tela, uma negra (ou “mulata”, segundo o título de Carybé) de proporções gigantes aparece nua deitada numa cama com as pernas entreabertas. Sua vagina ocupa o centro da tela de onde parecem ter saído todas as pessoas e coisas que com ela compartilham a cama. Aqui parece que as supostas dualidades entre Natureza e Cultura, Carne e Alma se dissipam. Sabemos que no mistério da Imaculada Conceição, a virgem Maria escutou com a Alma (Cultura) o anjo do Senhor e concebeu, não pela via do sexo (Natureza), seu filho, homem-deus, que veio para salvar os outros homens da barbárie do pecado original. O milagre desta Mulata Grande, entretanto, é inverter essa cosmologia cristã em favor de paganismo festivo e sexualizado, no qual o mundo (a cultura) é concebido pelo canal do sexo (da natureza). É isso o que, aliás, nos conta o mito em que Iemanjá, violentada por seu filho, Ogum, corre e, ao cair, faz sair de seu ventre toda a legião de orixás existentes. Na cultura africana e afro-brasileira o sagrado vem da terra e do baixo corpo, por isso tudo o que diz respeito a estes é sagrado. Os sentidos do corpo são todos acionados na religião (a visão das cores vivas e formas naturais, a audição das músicas e rezas, o gosto e o olfato das comidas votivas bem temperadas, o êxtase da possessão). Esse princípio, que une o sagrado ao profano, o extraordinário ao cotidiano, o católico ao africano, enfim o corpo como mediação entre a natureza e a cultura parece ter cativado os olhos de Carybé e o fez escolher viver junto ao povo da Bahia.”
Pegou a visão?
Salvador é um multiverso, em que realidades paralelas inacreditáveis existem e coexistem, para absurdidade de quem observa. Talvez seja essa banalização do absurdo o cerne do cotidiano de cada um que transita na cidade. Absorta, a pessoa apela ao bom humor e às paisagens surrealistas para não fazer o mundo invertido engolir a gente.
E já que o trânsito foi abordado, num choque de culturas que gesta uma cidade de riqueza humana sobrenatural, o outro lado, o excludente, o opressor, é tratado em artigo exclusivo de Daniel Caribé e na forma como o transporte público perpetua hierarquias de classe, mantendo os de baixo o mais longe possível da interação com os de cima. E a poesia de Nílson Galvão vaga pela cidade num ônibus, inalando aromas que cabe a você decidir se agradável ou não – mas de leitura indiscutivelmente prazerosa.
E André Uzêda, jornalista dos melhores que a Bahia já produziu, detalha prédios e apartamentos como receptáculos de histórias particionadas.
O futebol não poderia deixar de fazer parte, e vem de um jeito diferente.
Faustino Menezes e Juliana Tourinho discorrem sobre o que é ser torcedor de Bahia e de Vitória numa cidade que conta parte de sua história recente nos gramados da Fonte Nova e do Barradão, com Pituaçu vez a vez pedindo licença para ser palco. Futebol e Salvador estão tão entrelaçados, que esta revista retoma uma tradição perdida no tempo.
A partir de hoje, em cada nova edição será lançado um capítulo inédito em formato de folhetim do livro “Tu és o grande amor da minha vida: as aventuras da bola na cidade de Salvador”, do cânone do jornalismo baiano, Paulo Leandro, ou Painho Leandro, adotado que fui pelo mestre.
E como já maltratei demais o juízo de vossências com esse editorial-introdução mais demorado que o buzu que você precisa pegar, me despeço com a singela resposta de Caetano Veloso numa entrevista a Marina Rovelli, do jornal A Tarde, publicada em 2 de maio de 2014, quando indagado a comentar sobre sua relação com a cidade.
“Salvador foi minha primeira cidade grande. Nunca nenhuma foi maior.”
Maior que a velha cidade de Bahia não há.
Cabe o mundo em Salvador.
O melhor país de todos os continentes e universos, diretos ou paralelos, porque nela todos se alojam, e assim entram em choque e explosão.
Boa leitura.
Editorial publicado na Papo de Galo_ revista #14, de 28 de março de 2021, páginas 7 a 12.
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