As ruas não estão pintadas. Bandeirolas penduradas, só se for de São João. Ninguém comenta, não há excitação. Há dezessete dias da abertura da Copa do Mundo, o silêncio toma conta. Afinal, vai ter Copa?
Não fossem as insistentes propagandas de um professoral Tite, sequer notaríamos. A lista dos 23? Sem polêmicas. Figurinha fora da Copa? E daí? Seria inimaginável que no marqueteado país do futebol coubesse perguntar às vésperas do maior evento deste esporte: quem se importa com a Copa do Mundo?
Parece haver palavra de ordem que proíbe a empolgação. Palavras traduzidas em ações de um dia-a-dia que não aceita descanso e assimiladas em mentes anestesiadas pelo despautério coletivo. Estamos na confluência que culmina no ponto baixo da alegria do ludopédio. São tantos os motivos que é impossível atribuir-se culpa a um, senão ao conjunto da obra.
Estamos ainda na ressaca de 2014. Vivemos o auge da intensidade do futebol há 4 anos, quando o #NãoVaiTerCopa indignado foi substituído pelo “quero Copa todo ano” empolgado. A mão pesada da realidade caiu sobre as nossas cabeças com as dívidas, com as acusações de corrupção, com as obras não ou mal-acabadas, com o cidadão bancando a farra impune dos poucos.
Torneio capitaneado pela Fifa, entidade com confiabilidade abaixo de zero, que imitando colonizador do século XV, invadiu, saqueou, levou riquezas e se escafedeu para seus castelos europeus, procurando nova colônia para explorar. Jogado por atletas que vagam por longínquos gramados atapetados da Europa, sem contato, sem toque, sem raízes. Em campo nacional, o resto, os não-tão-bons, os no máximo esforçados, os refugos sem mercado e os jovens que sonham com a primeira oportunidade para brilhar no estrangeiro.
Transportamos este amargor de humilhação e vemos o mesmo acontecer na distante Rússia. Tal qual aqui, lá é uma potência econômica de dimensão continental envolta em governos altamente corruptos. Deles, pouco sabemos. Não há conexão que aproxime, apenas preconceitos que nos afastam.
Além do mais, estamos anestesiados pelo ambiente nacional que não permite alienação. As notícias diuturnamente bombardeadas explicitam a necessidade de estado de alerta da população, ladeados por um estado de emergência nas cidades, aproveitamento barato de políticos inescrupulosos, enquanto líderes de Governo negociam nos bastidores acordos espúrios.
Há dúvidas de quem vai pagar a conta? Estamos no meio do fogo cruzado, sem ter para onde correr. No olho do furação, ora, pois!, vêm com esse negócio de Copa do Mundo. Que Copa, mané Copa! Como pensar em distração quando não se sabe como ir ao trabalho ainda hoje?
Pois, navegando contra a maré do senso comum, tendo a enxergar esta Copa como de necessidade fundamental, de primeira grandeza. Não podemos permitir que os burocratas de escritório nos levem a alma. Não podemos declarar derrota, abrindo mão de uma paixão que ajuda a nos definir como nação.
Levantemo-nos, insurgidos, contra os castradores da diversão! Já tentam nos tesourar o Carnaval há anos. Basta! Se por um lado, despertamos para o poder em nossas mãos, acordando para um debate político que nunca vimos em nossa história com tanta dimensão, não taquemos fogo no circo. Até porque, dentro de uma realidade atual em que extravasar significa entrar em rusgas permeadas por palavrões e animosidades, gritar gol e abraçar culturas de todo o mundo é questão de saúde e civilidade.
Fica, vai ter Copa, sim. Está permitido. E vai ser lindo.
*Gabriel Galo é escritor
Artigo publicado na página 2 do Correio da Bahia em 28 de maio de 2018. Link aqui.
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