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Futebol: esporte, política e marketing

Futebol: esporte, política e marketing

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Numa era em que a comunicação vale muito, até mais que princípios, futebol é indissociavelmente esporte, cultura, entretenimento, política e marketing. Futebol e política caminham e vão sempre caminhar juntos.

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O Santos parou uma guerra?

Nos meses de janeiro e fevereiro de 1969, o Santos de Pelé estava excursionando pela África. Disputou dois amistosos na Nigéria, que então vivia sob intensa Guerra Civil na região de Biafra por conta do controle de jazidas de petróleo. No dia 25 de janeiro, empatou por 2 a 2 com a Seleção Nigeriana, com 2 gols de Pelé, na capital Lagos.

Em 4 de fevereiro, 10 dias depois, seguiu para Benin para o segundo amistoso. Benin que ficava justamente no território de Biafra. Recebido com festa, o time brasileiro interrompeu uma guerra civil para que a população do país pudesse ver Pelé jogar. (A partida disputada no Estádio de Ogbe, contra o Estado do Centro-Oeste, foi vencida pelo escrete brasileiro por 2 a 1).

Assim foi construída a narrativa desta viagem, apenas mais uma na era Pelé. Excursão ao estrangeiro era a maior fonte de receita do clube santista na época. Só que não foi bem assim. E isto diz muito de como se constroem lendas urbanas.

Na época, o Benin (hoje Moçambique) já não se encontrava mais sob domínio de Biafra. Quando o Santos lá esteve, a cidade não pausou a guerra para que Pelé desfilasse sua categoria. A guerra, apesar de continuar por ainda mais um ano, já se afastara da cidade.

Foi uma reportagem de um jornal americano que primeiro noticiou que Pelé tinha conseguido parar uma guerra na Nigéria. Armando Nogueira, lendário cronista brasileiro, puxou o gancho, chamou de exagero, mas construiu linhas exaltando que com Pelé não seria de se espantar este tanto. Assim, a magia substituiu a realidade e para sempre ficou a máxima de que Pelé parou uma guerra.

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O botafoguense Armando Nogueira, uma das maiores referências da crônica esportiva brasileira. Uma crônica sua, que fantasiava em cima do “Pelé parou uma guerra”, contribuiu para reescrever a história.

Apesar de desenrolar menos sublime – ah, o espetáculo de dizer-se pausador de conflitos – o aspecto político não é menor. Tanto pelo contrário.

Agente reconstrutor de imagem

Inicialmente, a Nigéria não estava inserida nos planos de viagem do espetacular time santista. Só que os valores colocados na mesa pela vigente Ditadura Militar Nigeriana foram atraentes demais para serem recusados.

Assim, a rápida passagem de Pelé pelo país africano virou propaganda do regime autoritário e sanguinário, atacado que era pelos órgãos internacionais e sofrendo pressões e sanções por todos os lados.

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Yakubu Gowon, Chefe do Governo Federal Militar da Nigéria entre 1966 e 1975, durante a passagem do Santos de Pelé pelo país.

Para eles, portanto, ver a falácia de que o Santos de Pelé interrompeu uma guerra caía como uma luva nos planos de amaciar a imagem do país e de seu autocrata.

Os embriões do futebol

A Revolução Industrial provocou mudanças estruturais permanentes na sociedade inglesa. A migração de uma economia baseada no campo para uma urbana foi rápida. Ao mesmo tempo, as máquinas conseguiram causar um aumento abissal de produtividade e redução de custos. Tão logo, as fábricas atraíam mais gente, para produzir em quantidades progressivamente maiores a custos — e consequentemente preços — menores.

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As fábricas, impulsionadas pela tecnologia a vapor, mudaram a vida na cidade.

Era o milagre do acesso ao consumo.

Ao mesmo tempo, o ambiente insalubre das fábricas, as casas conjugadas próximas ao local de trabalho, a ebulição do comunismo, a insegurança geopolítica da época (o mapa tal qual conhecemos hoje era quase inteiramente diferente há um século e meio) criava o desejo de melhores condições de trabalho.

Assim, crianças foram impedidas de trabalhar, instituindo-se a idade mínima; mulheres grávidas tiveram condições especiais que respeitavam – embora primitivamente – suas limitações; veio a criação do conceito dos fins de semana livres.

No gráfico, percebe-se uma queda significativa de horas trabalhadas depois da I Guerra Mundial. Mas as cerca de 60 horas semanais no terço final do século XIX já eram melhorias — e com menos trabalhadores nas fábricas.

Um contingente inteiro de pessoas passou a usufruir de algo a que jamais teve o privilégio de acessar: tempo livre. Uma gente com fortes lembranças da fome, da migração para a cidade, das condições precárias de sobrevivência. Quase todos analfabetos, leitura não havia; música, era quase algo de outro mundo. Muito do tempo era dispensado em bares e em apostas, locais para esquecer e para sonhar com um futuro melhor.

Além disso, havia um problema com o tema ‘tempo livre’. Tempo livre era entendido como exclusivo das classes dominantes. A lógica, um tanto perversa, é a de que se suas condições de vida são precárias, você precisa dedicar todo seu tempo ao trabalho. Afinal, quem não fizesse assim, seria merecedor do sofrimento que se passava. Atividades de lazer, portanto, eram privilégio daqueles com a vida ganha; aos pobres, era sinal de ociosidade (se tem tempo livre, poderia trabalhar mais).

Foi nesse clima que uma variação de um esporte violentíssimo, e proibido por lei, que unia rudimentarmente rúgbi e futebol, foi sendo aperfeiçoado e suavizado. Enquanto faculdades debatiam qual seriam as regras de um esporte que não se sabia exatamente qual era, nas ruas, chutar bolas já era algo corriqueiro.

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Desenho que representa as origens do futebol na Inglaterra de meados do século XIX.
Fonte: FIFA.com

O embate elite x povo, como se vê, está presente desde o nascimento do esporte bretão.

Não demorou para que se criassem equipes que jogassem umas contra as outras. Associações de trabalhadores, fábricas, regiões, todos formavam um selecionado que duelavam entre si, não mais com base na violência, mas no que em Eton – uma das escolas que buscavam uma maneira de formalizar o jogo – se chamava de “o jogo do drible”.

A identificação com a população, carente por entretenimento, foi instantânea.

A FA Cup ainda é disputada. Suas finais acontecem anualmente em partida única no estádio de Wembley. O Manchester City é o atual campeão.
Em 1863 foi criada a Football Association, que tentava pôr um pouco de ordem na casa. Em 1873, foi organizado o primeiro campeonato do tal football, a FA Cup.

Aprendendo com as lições do Império Romano, que fazia do pão e circo sua ferramenta de controle social, o esporte como entretenimento logo virou política de pacificação pública.

Mais para frente, em 1894, Charles Miller desembarcou no Brasil com duas bolas usadas, alguns pares de chuteiras e um livro de regras. No ano seguinte, ao dia 14 de abril, organizou o que seria oficialmente o primeiro jogo de futebol em terra brasilis. E o rumo do esporte foi redesenhado pra sempre.

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O jovem Charles Miller (1874-1953), com seu vasto bigode, trouxe o futebol para o Brasil e mudou para sempre o destino do país.

A massa como fio condutor da relevância

A importância política do futebol fiou-se, desde sempre, na sua massa de acompanhantes, na sua capacidade de mobilização. E ela aumenta na medida em que o esporte foi se transformando em identidade nacional.

É o volume que estende a magnitude do futebol, retroalimentando a cadeia de relevância: ganha mais destaque porque é da massa e por ter mais destaque, ganha ainda mais massa.

Insurgências contra o racismo na alvorada do futebol

Em 1923, um clube recém-promovido da segunda divisão varreu o Campeonato Carioca. Foi o até então desconhecido Vasco da Gama, com elenco composto majoritariamente por negros e mulatos, causando furor nas altas classes que regiam as federações de antanho (perceba como não mudou muita coisa nestes mais de 100 anos).

Decidiu-se naquele ano, então, criar duas ligas apartadas. A dos clubes grandes, a AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Athléticos), e a dos clubes pequenos, a AMDT (Associação Metropolitana de Desportos Terrestres). A inclusão do Vasco no grupo seleto dependeria de uma condição: que todos os mulatos e pardos do elenco fossem cortados.

O Vasco foi pioneiro ao eleger, em 1904, Cândido José de Araújo, o primeiro presidente negro de um clube de futebol no Brasil. Ele ficou no cargo até 1906.
O absurdo da exigência (que na época não era tão absurda assim, portanto, saudações ao Vasco) fez com que o clube de São Cristóvão se fechasse com o elenco e sob o argumento de não possuia estádio próprio, foi renegado pelos bambas para se filiar à AMDT. Era o Vasco escrevendo mais um de seus capítulos fundamentais na história da luta contra o racismo no Brasil.

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Os camisas negras , time do Vasco campeão carioca de 1923.
Foto: Acervo CRVG

Ainda mais forte foi a posição do Bangu, em história menos conhecida, mas ainda mais emblemática. Quando em 1907 a liga proibiu jogadores negros – o Vasco nem sequer tinha time de futebol neste ano – a equipe simplesmente abandonou a liga em desagravo ao racismo explícito. Voltou às atividades com a derrubada do veto dentro do regulamento — o racismo estrutural, por debaixo dos panos, continuava e continua à solta, vide o caso do Vasco anos mais tarde — e em 1911 conquistou o primeiro troféu de uma equipe predominantemente negra no futebol: a segunda divisão do Campeonato Carioca.

O Bangu portanto, o mesmo Bangu de Castor de Andrade, foi um pilar na luta contra o racismo no futebol brasileiro.

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O Bangu campeão carioca da segunda divisão de 1911. Fila de cima: Antônio Pereira, Luiz Raison e Antônio Carregal. Fila do meio: Arlindo Barbosa, Roldão Maia e Accácio da Silva. Sentados: Loth da Silva, Orlando Cardoso, Narciso Araújo, Francisco Gomes e Justiniano Telles.
Foto: Acervo Bangu.net

Histórias como estas são muitas, tanto para o lado do posicionamento firme de defesa de ideais progressistas e civilizatórios, quanto para o outro, de um conservadorismo racista e de desrespeito ao próximo.

Um dos casos na ponta vergonhosa da história trata justamente do Vitória, que se profissionalizou apenas em 1953. Dentre os motivos, o clube se recusava a compor ligas que permitissem a presença de negros em suas disputas.

A luta contra o racismo, tão enraizado na cultura brasileira, sempre esteve no centro das opiniões do futebol. Se antigamente ofensas racistas eram deixadas de lado como se fosse algo menor, hoje detém, corretamente, o status de atitude abominável.

E lutar contra o racismo é, sobretudo, um ato político.

Não é apenas o futebol: o esporte como palanque político

O posicionamento político, por óbvio, não é exclusividade do futebol. Em 1968, no auge das lutas pelos Direitos Civis nos EUA, que viu seu maior líder, Martin Luther King, assassinado poucos meses antes, Tommie Smith e John Carlos, ouro e bronze respectivamente nos 200 metros rasos nas Olímpiadas da Cidade do México, empunharam o gesto característico do movimento Black Power no pódio, ao som do hino nacional americano, numa das imagens mais emblemáticas da história do esporte.

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Tommie Smith e John Carlos em seu protesto no pódio nos Jogos Olímpicos de 1968.

Anos antes, Mohammed Ali se recusou a combater na Guerra do Vietnã para defender um país que oprimia e segregava os negros.

Apesar de não ser mais jogador profissional, Kaepernick virou estrela de propagandas da Nike mundo afora. Num comercial premiado, afirma “acredite em algo, mesmo que isso signifique sacrificar tudo”.
Mais recentemente, em 2016, Colin Kaepernick, quarterback do San Francisco 49ers, equipe da NFL, a liga americana de futebol americano, e seu companheiro de equipe, Erick Reid, se ajoelharam em protesto contra a segregação racial que viceja no país. Atitude que significou aposentadoria precoce para o quarterback, que se manteve firme nos protestos e se tornou persona non grata na Liga. Sua resolução firme de lutar contra o que considerou ser causa mais importante que jogar futebol americano profissionalmente foi o ponto de partida de um movimento nacional que tem debatido o racismo no país e estimulou outros atletas a tomarem lado nesta luta.

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Erick Reid e Colin Kaepernick se ajoelham durante o hino nacional americano em protesto contra a epidemis de assassinatos de negros desarmados por agentes de segurança americanos.

Em muitos casos, como se vê, o posicionamento político contrário ao status quo vem acompanhado de um preço altíssimo a ser pago por quem o assume.

Parte desta história virou filme, Invictus, com Morgan Freeman interpretando Mandela.
Em 1995, Nelson Mandela, recém-eleito presidente da África do Sul, usou a Copa do Mundo de Rúgbi para aproximar um país devastado pelo apartheid.

E por quê o esporte se torna um palco tão atraente para protestos?

Exatamente porque é um momento que consegue angariar atenção focada por parte de milhões de pessoas. Porque, naquele momento, aquele que protesta não é mais um: é possivelmente o único. E numa transmissão ao vivo, não é permitido ocultar um fato desta magnitude, gerando repercussões que vão muito além do ato em si. Afinal, o que importa é a mensagem. E quanto mais ela se espalhar, maior será sua importância.

Futebol é política

A Arena (Aliança Renovadora Nacional) foi um partido político criado em 1965 (registrado oficialmente em 1966) para dar sustentação política à Ditadura Militar brasileira.

Onde a Arena vai mal, mais um time no nacional.

Esta era uma frase dita durante a Ditadura Militar brasileira, que usou e abusou do futebol como instrumento de sua propagação. Em especial o Presidente Emilio Garrastazu Médici. Flamenguista roxo, Médici usou e abusou do futebol como instrumento de aproximação popular.

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Durante a Ditadura Militar, Medici – segundo da esquerda para a direita 0 usou estádios de futebol para dar ares populares ao regime.
Um dos ‘problemas’ da reinauguração da Fonte Nova foi convencer o povo, cético, que a tal arquibancada superior não cairia. A Bahia e seus dons premonitórios: foi em 2007 que este medo finalmente foi concretizado.
Durante a administração Médici, estádios Brasil afora foram construídos e ampliados. Foi quando, por exemplo, a Fonte Nova ganhou o anel superior. A Copa de 1970 foi também muito usada para “humanizar” o regime brasileiro. Qualquer semelhança com o caso da Nigéria, não é mera coincidência.

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Pelé levanta a Jules Rimet ao lado de Médici.
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Pelé também escreveu carta direcionada ao então Presidente. Nela, ele agradece a “honra em representar v.excia”.

Em 1979, o Campeonato Brasileiro, com fórmulas esdrúxulas criadas em cima da hora para abraçar a expansão inesgotável de equipes, chegou a ser disputado por 94 equipes.

Incontáveis também são os dirigentes e jogadores que se aventuram no mundo das eleições da política formal. Praticamente todo clube tem um caso para chamar de seu. Como exemplos, o atual Prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, é ex-presidente do Atlético-MG; Danrlei, goleiro do Grêmio de Felipão de meados da década de 90, é Deputado Federal pelo Rio Grande do Sul; Romário é Senador pelo Rio de Janeiro.

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Alexandre Kalil (PHS), ex-Presidente do Atlético-MG, é atual Prefeito de Belo Horizonte. Apenas mais um caso de pessoas ligadas ao futebol que tornam políticas.
Foto: Amira Hissa / Flickr

No escancaramento das eleições, buscam estes o recall da identificação clubística para gerar conexão e transformá-la em votos. Mas tem também a manipulação por debaixo dos panos, que se usa do futebol para angariar benefícios a determinados grupos e manter um certo nível de controle social e de poder.

Lembremo-nos do Pan 2007, do Jogos Mundiais Militares 2011, da Copa do Mundo 2014, dos Jogos Olímpicos 2016. O que significaram estes eventos senão uma estratégia de ampliação de poder político e de desvio de verbas públicas? É a utilização dos grandes eventos — toda política adora uma grande obra — para promover a imagem do país, da cidade.

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Eduardo Paes (Prefeito do Rio de Janeiro), Sérgio Cabral (Governador do Estados do Rio de Janeiro), Carlos Arthur Nuzman (Presidente do COB), Lula (Presidente do Brasil) e Orlando Silva (Ministro dos Esportes) comemoram a confirmação da cidade do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos 2016. Nenhum deles possui atualmente cargo público. Três deles (Cabral, Nuzman e Lula), inclusive, estiveram ou estão presos.

O Profut também é exemplo de como a irresponsabilidade financeira de clubes pode ser perdoada, alongando dívidas a perder de vista e sempre sofrendo intervenções para perdoar grande parte do montante. A Timemania é loteria pensada para abater parte da dívida dos clubes com a União usando recursos da própria União, um descalabro.

A mensagem deve ser lida nas entrelinhas: o futebol, controle social que é, não pode falhar.

O meio de comunicação definindo eras

A simpatia pelos vencedores forma gerações de torcedores, que abandonam seus quintais para abraçar até onde a vista alcança. Do rádio até a conexão imediata da internet, o meio define o poderio popular de uma agremiação.

A expansão do futebol brasileiro ocorreu muito por causa da Rádio Nacional. Única estação transmitida para todo o Brasil, tinha sede no Rio de Janeiro. E de lá transmitiam preferencialmente jogos dos times cariocas. Com isso, o Flamengo, de grande força nos anos 80, se tornou líder da preferência nacional, muito além do estado.

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O estelar Flamengo campeão brasileiro de 1980. Equipe foi pilar da carioca Rádio Nacional para expansão da radiodifusão no país.

Quando a TV se tornou mais acessível após abertura econômica, foi época de os times de São Paulo dominarem as estações. Palmeiras, Corinthians e São Paulo apareciam constantemente com seus esquadrões erguendo taças.

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O São Paulo Campeão Mundial de 1992. Time ganhou projeção nacional e mundial, e a televisão foi instrumento fundamental na sua propagação.

Hoje em dia, na internet, equipes estrangeiras vão ganhando cada vez mais destaque. As novas gerações vão paulatinamente se distanciando da identificação nacional para se alistar a verdadeiras seleções internacionais, que jogam em gramados impecáveis e acumulam títulos.

Sobretudo, há um elemento que constrói narrativas de sucesso. Que aproxima o garoto mais de Messi e Cristiano Ronaldo que do craque da querência, que, convenhamos, não joga tanto assim. Quem monta a embalagem para tornar mais palatável o inalcançável é o tal do Marketing.

“Ei, você, que nunca verá o Cristiano Ronaldo ao vivo em campo e sequer entende muito bem por que tanta o idolatra. Sua maneira de se aproximar dele é comprando um jogo que tem ele na capa, a chuteira que ele usa, o produto que ele endossa.”

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Cristiano Ronaldo na capa do FIFA19. A internet tem formado uma nova geração de brasileiros torcedores de times estrangeiros.

A era do Marketing

Neymar Jr, estrela maior da Seleção Brasileira de futebol, tem aproximadamente 127,5 milhões de seguidores no Instagram. Lionel Messi, 133,9 milhões. Cristiano Ronaldo, surreais 186,6 milhões.

Há muito tempo, gigantes europeus como o Real Madri e o Manchester United, além do novo-grande PSG, têm grande parte de seu faturamento oriunda da Ásia. É para lá que vão em pré-temporadas, arrastando multidões a jogos sem grande interesse, mas que atendem aos anseios de uma gente que quer ter um mínimo de contato com seus ídolos.

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Pré-temporada do PSG na temporada 2019-20 foi feita na China. Indo aonde está o dinheiro.
Foto: PSG.fr

Na era do futebol como negócio, TUDO é marketing.

Toda foto a ser publicada é pensada com cuidado. Cada endosso de produto vale milhões. Assessorias de imprensa filtram pautas e esterilizam interações. Equipes de redes sociais distanciam o atleta dos seguidores ávidos por um oi. Tudo em nome da construção e preservação da imagem.

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Goat é bode em inglês. GOAT é acrônimo, também em inglês, para o “o melhor de todos os tempos”. E assim a Adidas tem trabalhado a imagem de Messi há alguns anos.
Foto: Instagram Adidas

Uma ação é melhor quando ela potencializa seu retorno ao máximo.

Num mundo conectado, aquilo que não é comunicado, não existe. Se uma ação, identitária ou não, que parte de uma entidade de negócios não provoca reações e é espalhada ao máximo possível de pessoas, o próprio objeto da ação perde relevância.

Como exemplo, uma campanha contra o desastre do óleo no Nordeste será tão melhor quanto maior for o seu impacto e alcance.

Mas, principalmente, descobriu-se que posicionamentos progressistas podem aumentar significativamente os lucros de uma empresa e das pessoas envolvidas.

Até a página 2

Ainda assim, raros são os casos de posicionamento firme de contestação do status quo. Porque, reforçando o imaginário popular, as mensagens acabam, normalmente, sendo da boca pra fora.

Quando a FIFA distribui faixas de “Diga não ao racismo”, está agindo de maneira louvável. Só que quando um clube ou uma torcida são flagrados em atitudes escancaradamente racistas, reduz-se a relevância da atitude e nenhuma punição é colocada. Deveriam complementar a frase “Diga não ao racismo, mas não faça nada de verdade”.

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Quase invariavelmente, as ações da FIFA contra o racismo se resumem a regulamentos — que não são aplicados — e faixas a entrada de equipes, como esta antes de jogo Brasil x Uruguai.

Esta percepção fica na mente das pessoas. Exatamente porque os donos do poder não entram em discussões que periguem reduzir o tamanho do público consumidor de seu produto.

E aqui mora a grande pegadinha destes discursos: até onde é marketing vazio e a partir de onde vira ‘boa’ intenção?

A diferença é a ação efetiva

O primeiro ponto a ser compreendido: toda ação é marketing.

O segundo a ponto a ser compreendido: boa intenção não é intenção pura, que exclui ganhos próprios.

Quando o Vitória fez em 2012 uma das campanhas mais bem-feitas do marketing esportivo brasileiro, a “Meu sangue é rubro-negro“, com a camisa em preto-e-branco que voltava o vermelho a partir de campanhas de doação de sangue, mostrou qualidade na execução e resultado efetivo.

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Concepção da campanha “Meu sangue é rubro-negro”
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Execução: campanha ativa durante jogo oficial pelo Série B 2012.

Três anos mais tarde, em 2015, o primeiro semestre tenebroso ofuscou outra campanha magistral, a de doação de órgãos. Um jogador, ao ser substituído, tirava o escudo de ser uniforme e doava a quem o substituía. Uma ideia para ser aplaudida de pé.

Ambas viraram estudo de caso no mundo do marketing esportivo. Porque aliam uma excelente sacada para ajudar a resolver um problema, execução primorosa, ativação com comunicação para ampliar o alcance do projeto e resultado. Ou seja, foram ações efetivas, que levaram melhorias aos problemas propostos. Além de, claro, contribuir de maneira inegável para alavancar a imagem do clube.

A diferença entre o discurso vazio e a boa intenção é exatamente a capacidade de mobilização, a possibilidade de oferecer melhorias, quantificáveis ou qualificáveis aos temos abordados.

Quando se aumenta em 46% o nível de doação de sangue por conta de uma campanha de marketing bem-sucedida, há ação efetiva; quando a FIFA distribui faixas, mas não pune clubes e torcidas racistas, não há.

O fator risco

Só que o cálculo de até onde se vale a pena lutar por uma causa é feito pontualmente. Porque toda ação envolve também riscos de diferentes vertentes. Risco de imagem, risco financeiro, risco técnico, risco político, risco de segurança…

Quando FIFA escolhe não punir um clube com ofensas racistas em seus meios, o faz por calcular as sanções que pode sofrer política e financeiramente. Então, derruba a ação efetiva.

Quando um clube de futebol decide não punir um torcedor ou uma torcida organizada que distribui cantos ofensivos direcionados a determinados grupos, o faz por temer os impactos financeiro e em segurança da própria agremiação.

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Caso Aranha foi um dos raríssimos que gerou punição efetiva. O Grêmio foi excluído da Copa do Brasil 2014 por conta do episódio de racismo.

A estratégia é a de sempre: solta-se uma nota lamentando e repudiando um ocorrido, mas, no cerne, nada é realmente feito e alterado. O tal do marketing até a página 2.

Assim, quando atletas, clubes ou federações pisam em terrenos lamacentos que envolvem risco, dar um passo à frente requer uma dose absurda de coragem e muita certeza daquilo pelo que se deve lutar.

https://www.instagram.com/p/B3x-TQHA2Z-/
Santos foi contundente após caso de racismo partindo de sua própria torcida.

Que o diga Colin Kaepernick. Que o digam Tommie Smith e John Carlos, forçados a parar de correr mesmo depois do ouro e bronze olímpicos. Que o diga o jovem Cassius Clay, que foi boicotado pelo próprio país no começo de sua carreira.

O fator risco depende, por certo, da aversão de cada um. Para alguns, como a FIFA, nenhuma causa compensa o risco financeiro. Assim, em meio à evolução do futebol feminino, a próxima Copa do Mundo será disputada num país de cultura que subjuga a mulher. Em meio a tantas denúncias de corrupção, que tal uma Copa na Rússia? As contradições derrubam o discurso, tornando-o inócuo.

A postura do Bahia

Quando no começo de 2018 o Bahia criou o Núcleo de Ações Afirmativas (NAA), o alarde foi pequeno. Como haveria de ser ao que era, então, um projeto.

Passados quase 2 anos desde sua formação, pode-se dizer que se trata de um sucesso. Exatamente porque o clube uniu ações efetivas de qualidade — sempre em conformidade com a premissa de ser o ‘clube do povo’ — e um ganho de imagem incalculável. Ampliou a sempre urgente questão do racismo e abraçou diversas causas, num leque diverso e complementar.

Quando se criam campanhas específicas como o Preto Tricolor, bate-se de frente com o racismo estrutural brasileiro. Quando se amplia a voz feminina no clube, quebra-se parte das estruturas de poder vigentes. Quando se finca o pé na defesa de direitos LGTB+, vai-se de encontro ao conservadorismo fúnebre que varre o Brasil. Quando se cria um programa como o “Dignidade ao Ídolo”, é a própria história do Bahia que está sendo preservada no apoio humano a quem movimentou a massa. Quando se estabelece uma parceria com o MP para identificação de pais de crianças somente registradas com o nome da mãe, ataca-se um problema encravado no machismo que causa estragos em gerações futuras. Ou quando abraça a causa da demarcação de terras indígenas, é o Brasil em sua origem e cultura que se busca preservar.

A qualidade do que o Bahia se propõe como material é inquestionável.

Campanhas impactantes, sempre com uma qualidade de produção elogiável. E que envolvem, pois, risco ao Bahia. Quando se bate de frente com aqueles que querem que tudo permaneça como está, há a possibilidade de que estes abandonem o barco.

Na matemática do clube, no entanto, é até melhor que estes estejam longe. E, definitivamente, o contingente novo de pessoas que se identificam com o clube compensa. Assim, quem lacra pode lucrar sim, desde que com clareza de ideais, qualidade na execução e resultado efetivo.

Isto quer dizer que tudo o que é produzido é imune a erros? Obviamente, não.

Quando há pouco tempo foi solto o “Nordestino retado torce para time de seu estado”, algumas coisas erradas estavam ali. A começar por colocar para representar esta campanha um jogador nascido nas Alagoas, jogador na Bahia e torcedor de um time do Rio de Janeiro. Pura inconsistência, fugindo da qualidade da execução que caracterizou os feitos do Bahia neste biênio.

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Campanha foi retirada do ar pelo clube, mas ainda é discutido e provoca reações acaloradas sobre a forma de tratamento dos torcedores “mistos” e da preservação das origens nordestinas. A forma, no entanto, foi muito ruim.

Depois, gerou polêmica pela forma. Enquanto as outras campanhas enaltecem, promovem grupos, esta cria uma barreira de distanciamento aos que são nordestinos para para times da região não torcem, pois retados não são. Questão de opinião, o que suscitou opiniões exaltadas no mundo de redes sociais. Lidar com a emoção exacerbada faz parte dos muitos desafios dos novos tempos em que as redes sociais são propagadoras de vozes instantâneas sem filtro.

O que favorece o Bahia neste cenário de posicionamento político é a consistência de suas ações, que tem origem na democracia instaurada no clube desde a derrubada dos Guimarães, em 2013. Não se trata, pois, de pontos isolados, mas sim de um ciclo que inclui e abraça causas progressistas, de identificação e preservação de setores alheios aos comandos públicos. E como coerência máxima, a recente entrevista de Roger Machado, técnico do clube, depois da derrota para o Fluminense no Maracanã, foi aclamada pelo Brasil e encaixa com perfeição na retórica que o Bahia quer contar de clube do povo.

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Roger Machado e Marcão, técnicos de Bahia e Fluminense, antes do jogo no Maracanã. Eles são os únicos técnicos negros do Brasileirão da Série A.

http://sportv.globo.com/futebol-nacional/videos/v/veja-a-entrevista-de-roger-machado-apos-a-derrota-para-o-fluminense-no-brasileirao/7999200/

A mais recente campanha do Bahia diz respeito ao desastre do óleo pelas praias do Nordeste e a criminosa omissão do governo federal. Ao manchar sua camisa com óleo, em mais um trabalho de qualidade impecável de execução e de comunicação, o Bahia cria atrito com o a entidade federativa mais poderosa do país. Entender o risco que isso envolve é fundamental para se louvar ainda mais a que o Bahia se propõe.

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Camisa manchada de óleo para levantar a causa do desastre do óleo no Nordeste.

A atitude desprezível de desmerecer quem faz

Segundo um jornalista, em nota lançada no sai seguinte à divulgação da campanha, o Bahia foi pouco antes convidado pelo CSA para integrar uma ação conjunta de clubes do Nordeste para trazer mais luz ao problema do óleo. O Bahia recusou, argumentando que estava com uma ação em fase final e que seguiria sozinho.

Isto bastou para que inúmeras teorias conspiratórias fossem criadas. Especialmente a de que o Bahia “roubou” a ideia do CSA. Assim, para uma parte da torcida do Vitória, somou-se o fato de que “é tudo marketing”, que “seria melhor que fosse todo mundo junto” e que “Bellintani está fazendo tudo isso para ser prefeito em 2020”.

O que causa desconforto nesta postura da uma parte da torcida do Vitória, naquilo que é apenas mais um capítulo de um comportamento estranho, é o de deslegitimar qualquer ação que venha do Bahia.

Para muitos, tudo o que vem do Bahia deve ser desprezado. Veste-se o manto da rivalidade que acha feio o que não é espelho, mesmo que para isso se desmereça uma ação absolutamente válida do outro lado.

No cerne, está uma tentativa de aproximar o Bahia ao Vitória de alguma maneira. Se o rubro-negro parece ter entrado numa espiral de retrocesso que o impede de crescer, que seja, então, puxado para baixo o Bahia. Só que há uma conclusão um tanto óbvia neste retrucamento tacanho.

Quando você atua recorrentemente para deslegitimar a ação do outro, você já está derrotado.

O único argumento que merece um parêntese — todos os outros serão ignorados, como deem ser — é o de “se fosse uma ação conjunta, o impacto seria maior”.

Esta afirmação é, por si mesmo, impossível de ser verificada. O comunicado conjunto — numa aliança, repita-se, elogiável entre os clubes do Nordeste — não incluiu o Bahia, que decidiu seguir sozinho, como se sabe.

Decerto, foi pesado pelo clube se valeria mais a pena seguir sozinho ou em conjunto. Optou-se pelo primeiro, e o resultado de imagem para o clube foi inegável. Monopolizou as atenções durante dias. E procurou fazer resultado a partir da ação, com o leilão das camisas para financiar os trabalhos de redução de danos nas praias.

Pragmaticamente falando, o Bahia deu um passo certeiro. E mesmo que tenha vazado a articulação do CSA, a campanha continua válida, pois ainda é referência.

Além do mais, o fato de se preferir que andassem em conjunto não altera o fato de que não tem como se saber se o resultado seria maior ou não. E, principalmente, o fato de se preferir que se ande em conjunto não significa que o clube tenha que atender aos anseios de torcedores que não são os seus.

Por último, uma questão de análise de qualidade da execução. Veja a imagem da camisa do CSA, a arte da campanha conjunta e a estratégia de comunicação. São comparáveis? Se por um lado, cada um faz o que é possível dentro de suas capacidades, por outro lado, este mesmo argumento vira reforço para que cada um ande conforme seus próprios princípios.

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Camisa do CSA para alertar sobre o desastre do óleo no Nordeste. Se a ideia da aliança entre clubes do Nordeste é louvável e merece aplausos, a execução deixa a desejar.

“Mas nada disso importa, eu quero ver gol

Por fim, muito se vê e lê de gente por aí “parem de fazer política no futebol. Eu quero é ver gol!” Estas mensagens dizem duas coisas.

A primeira, que ela pode ser traduzida para “parem de fazer política no futebol, desde que eu não goste da política que está sendo feita. Se for política do meu apreço, pode fazê-la à vontade, até apoio.”

O atual presidente do Brasil entende a importância do futebol e usa essa artifício para melhorar sua imagem. Nada de novo.

A segunda é a de que quem profere tais palavras desconhece por completo a importância e o significado do futebol.

Aliás, desconhece principalmente o que é política e suas implicações. Política está em absolutamente tudo aquilo que decidimos fazer, em tudo o que nos cerca. Imaginar que logo o futebol estaria imune a isto é, a mim, incompreensível.

Futebol é indissociavelmente esporte, cultura, entretenimento, política e marketing.

Não são elementos separáveis. Futebol e política caminham e vão sempre caminhar juntos.

Este artigo é, obviamente, um apanhado histórico sobre futebol e política. Não conta e nem se propõe a contar todas as passagens relacionadas, porque impossível. Algumas coisas podem ter ficado de fora (por exemplo, o amistoso da Seleção Brasileira no Haiti em 2004). Se você sentiu falta de algo, comenta aqui. Vamos debater e dialogar!

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