— Senhor… Josiel…
— Josuel.
— Ok, então! — Certificou-se o oficial de justiça olhando para o pequeno envelope à sua frente. — Senhor Manuel o senhor foi intimado a comparecer no fórum criminal da cidade amanhã às 09h.
Mais não disse.
***
Josuel era um sujeito absolutamente comum. Baixinho, careca, meio gordinho. Dotado de nenhum atributo físico que o qualificasse positivamente, embora, também, nele não houvesse nada hediondo. Vivia de calças cáqui, sapato um pouco sujo, camisa branca-bege de manga curta, seu uniforme escolhido para a vida. Nos fins de semana, saía de papete e camiseta branca para dentro da bermuda cargo, carteira no bolso da frente e, vejam só, uma boina. Era sua extravagância.
Uma vez criou um bigode que o fazia destacar-se na multidão. O apelido de baixinho da Kaiser o fez voltar à condição de anonimato.
— Bom dia, seu Juvêncio! — saudava ao jornaleiro todo Domingo quando ia buscar sua edição pesada e cheia de cadernos e de propagandas.
— Bom dia. — respondia, seco, o senhor magro e de barba por fazer, batendo a perna freneticamente aguardando uma pausa para fumar seu cigarro.
Os olhos do Juvêncio vibravam o óbvio de que ele não fazia ideia de quem era aquele sujeito que o chamava pelo nome. Como assim? Como assim não conhecia o Josuel? Há mais de 20 anos ele cumpria seu ritual dominical.
Teve uma época em que cortejou uma mulher. Órfão de pai e mãe num acidente da Rio-Santos, já passava dos 21 anos quando imaginou ser a Amelinha sua alma gêmea. Conversou com a Maria das Dores, mãe de seu grande amor uma vez. Ela concordou que se encontrassem, no dia seguinte, às 16h, com a filha junto. Arrumou-se com seu melhor terno. Comprou flores, lustrou seus sapatos, arrumou um perfume nas páginas de uma revista e seguiu rumo à felicidade.
Tocou a campainha. Atendeu a das Dores.
— Pois não?
— Boa tarde, dona Maria das Dores.
— Desculpa, eu te conheço?
— Eu estive aqui ontem, conversamos sobre eu casar com sua filha…
— Acho que eu lembraria se algo assim acontecesse, né, filho? Passar bem.
E fechou a porta na cara do pobre menino desiludido.
Virou contador por afinidade. Quem é que conhece ou quer ter relações com seu contador, ainda mais no fervor dos anos 80? Na faculdade, formou-se com 7 em tudo. Nem um décimo a mais ou a menos.
Acostumou-se a viver sozinho, o Rafael. Digo, o Josuel.
O fato é que não aguentava mais aquela história de ninguém saber quem ele era. A raiva foi crescendo dentro de sua pequena figura, e tomou conta de si. Tinha que se fazer conhecido. Respeitado. E temido.
***
Começou praticando pequenos assaltos na região onde morava. Situação constrangedora. Uma vez um jovem atlético reagiu ao assalto. O baixinho pôs-se a correr, no que o assaltado seguiu em sua cola. Conseguiu rapidamente alcançá-lo, derrubou-lhe com uma rasteira. Virou-o de frente, e reagiu espantado.
— O senhor está bem?
— Ahn?
— Desculpe tê-lo derrubado, senhor. O senhor viu para onde foi o assaltante que acabou de tentar levar a minha carteira?
— Ahn? — A cara de espanto e descrença do gordote era impagável.
— Sim, um assaltante! Ele tinha um corpo parecido com o seu, mas o rosto… Nem consigo lembrar direito como era.
A delegacia que cuidava do bairro uma vez tentou fazer um retrato falado do bandido que assustava a antes pacata redondeza. Ia até sair na TV! Tão grande foi seu lamento… Viu um quase-borrão sendo exibido como procurado, podendo bem ser qualquer um, dependendo da maneira como se olhasse.
Nem ele saberia dizer por que matou a vizinha. Sua primeira vítima. Apenas soube que gostou. Descobriu sua válvula de escape.
Demorou para que pudessem rastrear o Assassino sem Rosto, como passou a ser chamado. Seu alter ego. Sentia-se, de uma certa forma, honrado. Finalmente!, gritava em êxtase.
***
Chegou para cumprir sua intimação. Seria ouvido como testemunha sobre o assassinato da vizinha.
— Senhor Daniel, sua presença aqui hoje…
— Josuel.
Rapidamente a intimação virou acusação. Confessou seus crimes. Foi a júri popular.
— Estamos aqui, iniciou o promotor, diante de um assassino frio. Este senhor, o Maciel…
— Josuel.
— Senhor Ismael, favor falar apenas quando solicitado. — interpelou o Juiz.
— JOSUEL! — respondeu categórico.
— Senhor defensor, favor conter o seu cliente, seguiu o Juiz.
— Abimael, fica quieto… Este juiz é duro, não dê motivo para ele não ir com sua cara! — virou-se o defensor para o roliço ser à sua esquerda.
— JOSUEL! — Desta vez, gritou.
— Ordem!
Retomou o promotor.
— Trata-se de um assassino confesso. Nem muito preciso falar, as provas estão aí para confirmar a inexorável certeza: é necessário condenar, com o máximo da força da lei, o senhor Noel!
— JOSUEL! JOSUEL! PORRA! JOSUEL!
Agito na corte. Burburinho.
— Silêncio! Silêncio! — Gritava, inutilmente o juiz.
Jornalistas invadiram a sessão e tiravam fotos do criminoso. Estranhamente, todas as fotos saíam desfocadas. Um deles gritou:
— Gabriel, olha aqui pra mim, uma foto!
— JOSUEL! JOSUEL! MEU NOME É JOSUEEEEEEEEEEEEEEL!
Correria. O réu jogava papéis no ar. Histérico, estapeou seu defensor, mordeu o escrivão, tascou-lhe um bundalelê para o júri, cuspiu no Juiz. Um vexame. Um tiro de tranquilizante lhe apaziguou os ânimos.
Foi condenado ao manicômio judicial. Por lá, passou anos. Até a Dulcinéia.
Dulcinéia… Doce até no nome. Impossível pensar nela sem um suspiro. Magrinha, moreninha de sorriso encantador, um pouco tímida. Ninguém queria ter com o Josuel, bicho estranho até naquelas bandas. Pense. Sobrou para a novata. A Dulcinéia.
Entrou, com todo seu encanto, na cela acolchoada. Ele num canto, sem nada dizer.
— Bom dia.
Não houve resposta.
— Bom dia! — Falou um pouco mais alto.
Ainda silêncio.
— Ô, seu Josuel… O senhor não vai mesmo falar comigo?
Ah!, o dengo daquela voz…
Seus olhos abriram, marejados. Foi se levantando devagar, saindo de seu esconderijo, enquanto, aumentando o volume e a frequência, dizia.
— Sim! Josuel! Sim! Este é o meu nome! JOSUEL!
Aproximou-se de Dulcinéia. Tocou-lhe o rosto, queria-lhe guardar o tato.
— Josuel. Meu nome é Josuel.
Abraçou-lhe com ternura. Pediu para que ela se sentasse em sua cama, e mesmo contra todos os protocolos de segurança, ela o fez. Ele, então, se deitou em posição fetal, em seu colo. Ela, instintivamente, lhe acariciava os cabelos apenas laterais e bastante desarrumados.
— Josuel! Josuel! — balbuciou ele pela última vez, sem mais levantar.
***