Faltavam pouco de menos de 15 minutos para a abertura da exposição do Mário Schnübermann numa das mais importantes galerias de arte de Nova Iorque. Aproximando-se dos 45 anos, tinha destaque e renome nas Américas, Arábia e parte da Ásia, mas sempre batia na trave no mercado americano. Estava visivelmente nervoso. Caminhava apressado de um lado para o outro, apesar de já ter sido tudo testado à exaustão durante o dia: a luz, a disposição dos quadros, as fotos de seu estúdio, o som, os garçons, os comes e os bebes, além de mais algumas outras coisas.
Mary-Ann Stein, a irretocável proprietária, tentava, em vão, acalmar seu mais recente projeto.
– Não se preocupe. Tenho certeza de que você vai achá-la até mesmo agradável.
Referia-se à Giuliana Della Vecchia, uma das mais renomadas críticas de arte dos Estados Unidos. Ficaram sabendo de última hora que ela viria ao evento, um amigo de um amigo de um conhecido tinha conseguido a garantia de que ela estaria lá. As análises de Giuliana, italiana de nascença, mas radicada na Big Apple há quase três décadas tinha uma reputação que somente deixava dois caminhos àqueles passíveis ao seu julgamento: o apogeu ou o ostracismo. Ultimamente, em especial, o segundo se sobressaía.
– Estão em falta os verdadeiros artistas. Artistas puros, artistas da alma.
Era seu melhor tiro para o sucesso. Para o fracasso também.
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Mário era um artista sem um passado. Muitos tentaram contar sua história, mas apenas conseguiam enxergar o seu presente. O que levantava muitas suspeitas: quem era Mário Schnübermann?
Vários foram os repórteres que se dispuseram a destrinchar sua vida. Tinham acesso ao mesmo material que Mary-Ann teve poucos meses antes.
Era impressionante seu estúdio. Localizado ao norte da cidade de São Paulo, fora do agito urbano da cidade, provocava espanto a quem entrava. Assemelhava-se a um galpão aberto. Caótico. Diversas telas iniciadas, alguns encobertos com lençóis aparentemente finalizados, alguns até mesmo rasgados, talvez por uma explosão de sentimentos do artista. Era inconcebível caminhar sem chutar ou tropeçar em algo. Tubos e palhetas de tinta espalhados por todos os cantos. Garrafas de bebidas vazias. Caixas do que já foi refeição. Logo quem entrava, à direita, via um colchão no chão, virado para suas obras. Um banheiro aberto, não havia privacidade.
No fundo, uma obra grandiosa, devia estar há alguns anos sendo pintada. Deveria medir uns 18 metros de comprimento, mais de 2 de altura.
Mary-Ann entrou pelo portão aberto, chamou por Mário algumas vezes, que não respondeu. Absorta, foi vagando pelo local. Ao se ver diante do grande quadro, finalmente encontrou Mário. Agachado, segurava a paleta com a mão esquerda e um pincel na direita. Sua camiseta estava completamente suja de tinta, assim como sua bermuda jeans rasgada. Descalço, olhava fixamente para o quadro.
– A hipérbole da metrópole. Saudou sua visitante, sem sequer virar-se.
– Como?
– A cidade que nunca para. O sol no leste, a noite no oeste, se encontram em figuras que circulam entre os opostos sem interferência. É uma engrenagem única. Parte de uma mesma obra definitiva.
– Ah.
Então, finalmente, levantou-se. Os cabelos completamente desgrenhados, uma espessa barba por fazer, ambos grisalhos. Mary-Ann se sentiu automaticamente hipnotizada.
– Diga, falou caminhando, com a americana de tubo branco e sapatos negros a seguir-lhe, o que te traz aqui?
– Conheci o seu trabalho numa exposição em Lisboa, onde estive no mês passado. E fiquei perplexa com seu trabalho.
– E?
Era afeito a poucas palavras, muito não falava, apenas com o olhar, o que ela descobriu depois. Até então, não seria capaz de dizer a cor dos olhos daquele ser que tanto a fascinava.
– Quero levá-lo a Nova Iorque.
Ela entregou um panfleto sobre o local. Ele apenas viu o título, e deixou cair no chão, onde qualquer coisa aparentava pertencer.
Ele, então, buscou algo sob o seu colchão. Era um pequeno envelope. Entregou para a visita, ainda sem olhá-la diretamente.
– Conheço sua galeria. Aí tem tudo como faremos.
E foi em direção ao portão. Abriu-o rapidamente. Ela sempre a segui-lo.
– Espero que entenda. Preciso trabalhar. Logo ali na frente poderá encontrar um táxi de volta ao seu hotel.
Ela esticou a mão para cumprimentá-lo. Foi então que viu seus olhos pela primeira vez. Imensos e imersos de tristeza olhos azuis. Sem dizer uma palavra, Mario fechou o portão sem responder.
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Nunca tinha sido tão destratada a americana. Em todos os anos de trabalho, era cortejada, bajulada por artistas de todos os tipos. Alguns se dispunham a pagar para exibir consigo. Gostava do esforço empreendido, sentia-se importante.
– Petulante! Quem ele pensa que é? Disse para si mesma, sem conseguir segurar um sorriso no final.
Entrou num táxi no final da rua e seguiu direto para o hotel.
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Ao chegar, entregou-se a um longo banho. A figura de Mário não saía de sua mente. Sentia-se revoltada e excitada. Inconscientemente, como se em transe, tocava sua pele com a ponta dos dedos, o que lhe arrepiava toda. Acordou assustada do transe, apressou-se para sair do banho. Enxugou-se, tinha uma toalha na cabeça, voltou para o quarto. Ligou a TV, e viu o envelope deixado em cima da escrivaninha.
Sentou-se, abriu o envelope. Nele, havia a descrição de como seria a exposição. Quando. Quanto. Quem. A que horas. Lista de convidados obrigatórios. Quais obras seriam expostas. Passagens, custos, pagamentos, tudo minuciosamente detalhado. Inclusive uma sessão de fotos agendada para dali a 3 dias em seu estúdio, fotógrafo. Tudo.
Quando finalmente chegou à última página, apenas se lia:
– Toc, toc.
Ao pegar a página quase em branco em suas mãos, exceto pelas onomatopéias, ouviu batidas na sua porta. Espantada, seguiu e abriu a porta escondendo-se atrás dela, pois apenas de toalha permanecia.
Do outro lado, a mão de Mário abriu a porta escancarada. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, foi abruptamente beijada pelo artista, ao que, então, não pôde relutar.
Acordou no dia seguinte sozinha. Sentia-se enfeitiçada.
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Finalmente, eram 19 horas. Os portões da galeria foram abertos ao público. Em poucos minutos, pessoas chegavam. Primeiro passavam por um salão com grandes fotos em preto e branco ampliadas do brasileiro em seu processo criativo. Quase sempre de costas, sempre sujo de tinta, totalmente concentrado em suas obras. Um artista no sentido mais puro da palavra.
– Para dar contexto às obras, repetia Mary-Ann aos VIPs que chegavam.
Até que um pequeno reboliço chamou à atenção de todos. Um falatório invadiu a primeira sala da galeria, comentários diziam que Giuliana havia chegado. Mary-Ann correu para a entrada para recepcionar a ilustre crítica.
Giuliana, apesar de já passar dos seus 50 anos, era uma visão. Lindíssima, desceu do carro graciosamente. Foi rapidamente recebida pela dona da galeria, em meio a diversos fotógrafos registrando o momento.
– Que honra recebê-la, Giuliana. Seja bem-vinda.
– Obrigado. Por favor, me acompanhe e afaste repórteres, fotógrafos e curiosos.
Chegaram ao salão com as fotografias. Um garçom trouxe-lhe uma champanhe, prontamente aceita.
Circulou interessada pelas fotos. Fez algumas perguntas sobre o artista para a anfitriã, que respondia sempre com um sorriso encabulado. Tinha faro, a italiana.
– Chega. Aos quadros, por favor. E traga o rapaz.
Ainda no quarto onde já tinha se arrumado, Mário olhava atônito para o espelho. Um segurança bateu na porta e avisou-o de que era chamado na sala 1 dos quadros. E que ELA estava lá.
Olhou para si. Calça de linho dobrada na ponta para não cobrir o chinelo de couro, camisa de manga curta amassada, três primeiros botões abertos. Cabelos desarrumados, barba ainda mais espessa, e um olhar profundamente triste. Andava meio encurvado, devagar, como se quisesse esconder-se.
Respirou fundo e seguiu.
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– Giuliana, quero que você conheça Mário Schnübermann. Mário, esta é Giuliana.
Olharam-se sem dizer nada um para o outro.
– Mary-Ann, de agora em diante seguirei apenas com a companhia do Sr. Schnüberman e mais ninguém.
Constrangida, a anfitriã se despediu temporariamente. Fechou o acesso ao salão. Giuliana ia à frente.
– Conte-me sobre este quadro…
E ele, tropeçando nas palavras, descrevia.
Fizeram isso uma, duas, três, quatro vezes. Até que não poderiam mais serem vistos.
– Muito interessante, Mario. Pode parar de fingir agora.
– Receio não ter te entendido, Giuliana.
– Ora, Mario… Você bem sabe que é um artista incompleto.
Ele gelou. Manteve seus grandes olhos azuis grudados na sua algoz.
– Você realmente não faz ideia de quem eu sou, né? Mas eu sei exatamente quem você é, Mario Alberto.
Um calafrio correu pela sua espinha. Ninguém conhecia sua história.
Ela o agarrou, conhecia a galeria como a palma de sua mão. Encontrou uma sala escondida, e ali ela possuiu o brasileiro.
Tal qual um louva-deus após o acasalamento, propôs um enigma ao brasileiro. Ou entendia o que tinha acontecido, ou sua carreira estava encerrada. Ele seria exposto como o impostor que era.
Ele buscou em sua memória. Não conseguia lembrar. Até que…
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Roma, 1985.
Mário Alberto, então um estudante de artes, viajava pela Itália. Procurava entrar em contato com sua verdadeira conexão sentimental. Caminhava pela cidade eterna, quando foi atropelado por uma bicicleta. Nela, uma jovem estudante de arquitetura, Barbara.
Ela o levou para casa para ajudá-lo, ele estava bastante machucado. Conversaram sobre muita coisa, ela sabia falar inglês, ele também arriscava. O que não se sabia, se tentava.
Foi quando, ao ser surpreendida pelo fato dele se dizer artista, propôs, em tom jocoso, que ele criasse um personagem. Um personagem com jeito de artista. Enigmático, inconstante, impetuoso, depressivo. Nada mais importante para um artista que ele pareça com um.
– Muda completamente a percepção de como vêm sua obra. Você vai ver.
E caíram na gargalhada. Depois, se amaram por apenas uma noite.
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– Bárbara?
Ela explicou que no ano seguinte, tinha fugido da Itália por conta de problemas da família com a máfia. Instalou-se em Nova Iorque e mudou sua identidade.
Se no final, todos temos nossos segredos, saber alguns nos ajuda a sobreviver e a cobrar dívidas do passado.
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No dia seguinte, saiu a coluna de Giuliana. “Um artista incompleto”, dizia a única frase que fazia menção a ele. De resto, desatou a falar frivolidades e outros assuntos menos relevantes, pelo menos para ele. Tinha ganhado uma sobrevida, mesmo com a ausência do reforço positivo.
Estava, de certa forma, aliviado.
No final de sua coluna, ela escreveu:
– Continuam em falta os verdadeiros artistas. Artistas puros, artistas da alma.
Percebeu que alma e arte são entidade única. Felizmente, para ele, perceptível para poucos.
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