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Kalu e o que travoso

Kalu e o que travoso

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“Com franqueza só não tendo coração
Fazê tar judiação
Você tá mangando di eu”

Kalu, Caetano Veloso

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Dentre as coisas que me causam emoções à flor da pele, a música sempre esteve em primeiro lugar. Porque você está ali, seguindo sua vida, tranquilo e sereno, e ela surge do nada a atiçar os sentimentos mais profundos. Não pede passagem nem tampouco licença.

O riff de Shine On You Crazy Diamonds, do Pink Floyd me deixa hipnotizado. Arrepio instantâneo. Lazy, do Deep Purple, me deixa com vontade de aumentar o volume ao máximo, e viajar nos tantos solos de tantos instrumentos diferentes.

São muitas em tantos estilos!

Mas tem as que travam. E aqui, minha gente, os motivos são tantos e tão diversos, e tantas vezes desconhecidos, que apenas posso dizer que sinto. Citando Alceu, aquele gosto travoso de umbu, cajá. Quando a voz embarga, a garganta fecha, a palavra insiste em se esconder.

Quando João Bosco toca sua introdução e começa com seu “aqui meu irmão, ela é coisa rara de ver” em Jade, não adianta, sequer consigo balbuciar as palavras.

Outra é aquela em que Dorival Caymmi diz “pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. Há de se admitir, os primeiros versos, quando a maturidade chega e percebe a saudade da Bahia e a certeza do que dizia mamãe, tocam lá fundo, e, porra, Caymmi!, o tempo parece parar.

Algumas adquirem novos significados. Oração ao Tempo, de Caetano, é impossível para mim dispor-me a nada além de sentir. Choro feito criança, coisa da morte de meu pai.

Uma última ressurgiu nas últimas semanas. Atiça um nível de memória afetiva que estava escondida, guardada a sete chaves. Caetano, mais uma vez, e sua Kalu. Desta vez, pouco tem a ver com a música, mas com suas circunstâncias. Quando eu era um projeto de gente, tão pequeno que nem memória há a não ser borrões, Mainha nos colocava para dormir. Era o nosso momento sagrado, nosso santuário que desligava as coisas do mundo. Ela, então, cantava cantigas de dormir no embalo de Kalu. Seu escudo se montava, e não parecia que nada poderia nos atingir. Era a perfeição do que significava ao menino que o dia virou ontem e que o amanhã seria melhor, que ela garantia. Amor daquela monta renovava a esperança.

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Ontem cheguei à Argentina para minha viagem trimestral rumo ao fim do mundo. Sou recepcionado pelos meus filhos, cheios de alegria, carinho e saudade. Eles contam tudo o que vêm à mente, da escola, do balé, do passeio que fizeram, em alto volume, do tamanho da ansiedade deles. Jantamos um cachorro-quente, seguimos para a diminuta cabana que chamarei de abrigo pela próxima semana. Brincamos, fizemos lição de casa, contamos histórias, vimos um pouco de desenho e fui colocar os dois para dormir.

Deitados na cama, cantei as cantigas que desde sempre canto com eles. Então lembrei e tentei cantar Kalu. Não deu. Chorei com minha filha abraçada ao meu pescoço, me alisando a barba e eu de mãos dadas com meu filho do outro lado. Porque o momento está ali, nosso, e o amanhã será lindo. E percebo o tamanho do amor descomunal que minha mãe sentia pela gente, porque este amor de pai está em mim, me destruindo de saudade por dentro.

Porque uma semana é pouco.

Porque não tem nada que eu não fizesse pela felicidade destes dois pequenos.

Porque são a melhor parte de mim.

Porque só não tendo coração para fazer tal judiação, mangar de mim com sentimento tão paralisante, tão angustiante, tão acalentador, tão indescritível.

Porque me vi ali nos dois, que vão crescendo sem parar, pedindo apenas carinho, atenção, limite e a certeza de que tudo vai ficar bem e de que, aconteça o que acontecer, o papai sempre vai estar perto.

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