No diário da quarentena, certo estava o Cazuza quando preconizou que “viver não é mais tão bacana quanto a semana passada”. Ah, bons tempos…
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Lembra do Jornada nas Estrelas? Eu lembro. Quer dizer, lembro de algumas coisas. Uma delas, em especial, tem me vindo à mente o tempo inteiro. No início de cada episódio, a voz em off metia a data estelar num tempo muito distante e fora da mundanidade terrestre e dava as coordenadas de para onde seguia a Enterprise, a emblemática nave do Spock. Ah, bons tempos…
Hoje eu abro o olho pela manhã e a primeira coisa que ouço é a danada da voz dizendo que hoje é o dia que você escolher, a data estelar de sua minha preferência, narrada por uma apresentadora da Globo News.
Sei lá quando foi que entrei nessa quarentena, mas tempo, no isolamento, a gente aprende que é algo relativo. Segunda, quinta, domingo, que diferença faz? “Que dia é hoje?” é quase uma pergunta filosófica.
Confesso que comecei empolgado. Primeira segunda-feira de home office, e eu era a produtividade em pessoa. Mas a gente aprende também que esse negócio de procrastinar é algo que desenvolve na oportunidade. Depois de um tempo, antes das 11h da manhã é madrugada. Tudo fica pra depois.
E aí, aos poucos, a gente vai entrando em parafuso, sendo sugado a um universo paralelo, a um mundo invertido em que somos o avesso do avesso do avesso do avesso.
Acompanho as notícias. Só tem jornal passando, fazer o quê? Vejo na TV que povo corre pra estocar papel higiênico. Acho engraçado. Percebo que é na hora do desespero que a gente corre para assegurar aquilo que nos é mais valioso. A pessoa pode tossir de botar os pulmões pra fora, mas um buraco limpo garante dignidade.
Vi também que nas praias tem fiscal da Prefeitura botando o povo pra correr. Pô, taí uma profissão que Mainha botaria pra lenhar. Quando eu era moleque ela era a rainha de sair gritando “já pra dentro, menino!”, e todo mundo saía obedecendo, ai de quem fizesse oposição. Ah, bons tempos…
Mas ser humano é teimoso e quer viver no coletivo. E vai criando jeito de socializar. Inventaram desafio pra tudo quanto é lado nas redes sociais, multiplicaram vídeos de aulas com exercício na sala, tem até gente cantando na varanda! Mas a gente não está na Europa, não, que nos vídeos que eu vi o povo sabia cantar música bacana. Qual o quê!
Começou até bonito, mas depois de 3 minutos tem é guerra na sacada. Um de lá coloca funk, o outro chega com a panela, hoje rolou até Amado Batista por aqui e não sei mais o que fazer. Porque recomendação era de manter tudo aberto, pra arejar, que o vírus gosta de parapente e se pica. Mas como faz com essa gente toda se xingando aqui sem parar? Feliz tá é Dona Dalva, que vive pra xeretar a vida dos outros e agora é só crochê e sorriso de canto de boca vendo o circo pegar fogo.
Dizem que em no máximo 6 meses tudo passa e volta ao normal. A ver. Nem consigo mensurar quanto isso dá em datas estelares. Certo estava o Cazuza quando preconizou que “viver não é mais tão bacana quanto a semana passada”. Ah, bons tempos…
Dá meia volta aí, Spock, que deu ruim. Mas ele só me responde, com seu gesto eterno e voz da de plantonista: vida longa e próspera.
Gabriel Galo é escritor e não sabe nem que dia é hoje.
Artigo sobre o diário da quarentena publicado na página 2 e no site do Correio* em 23 de março de 2020. Link AQUI!
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Fac-símile do artigo “Log do diário na quarentena” no Correio*.