Não era uma relação de pai e filho. Era muito mais do que isso.
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Uma infância esquecida, por sofrida. Talvez pelo fato de que sua verdadeira vocação fosse não ser pai de menino pequeno, mas de menino homem. Lembra quantos você abraçou para debaixo de suas asas durante tantos? Tios que começaram o primeiro emprego com você. Os colegas de faculdade que o viam como espelho, e o tratavam com reverência que lhe inflava o ego.
Ego que nunca foi não exagerado. Sempre expandido. Saiu de uma faculdade por não acreditar que os professores tinham cacife para tão gênio como pensava que era. No fim, era a necessidade da vida que te levava, filho pra criar não é fácil.
Não é e nunca foi muito a sua praia.
Foram anos de sufoco. Três fugas e recomeços ao longo da vida. De Salvador para Campo Grande. Depois para São Paulo. De volta para a Bahia. Que anos sofríveis, não? Grana nenhuma, uma dureza justificada apenas pelo sua própria racionalização. Com os 51 anos batendo à porta, graduação em Direito, quando tive a honra e alegria de entregar seu diploma. Não cabia em si, lembra? Era tanto orgulho que transbordava. O resultado que chegava.
E que, há tempos, teimavam em não chegar. A riqueza que esperava de supetão. Foram algumas empresas, inúmeras empreitadas. A certeza de que o intelecto o faria voar longe.
De fato, invejava sua escrita. Tanto que quando me proponho a escrever minhas parcas linhas, quase a única aprovação que busco é a sua. Curtiu? Como posso melhorar? Diz aí o que você acha, vai.
É que você escrevia bem demais. Aos borbotões. Uma genialidade de raciocínio que certamente serviu de modelo. Algo haveria de ser modelo, ora. Mesmo que o temperamento tanto lhe prejudicasse e relações precisassem ser constantemente refeitas.
Como a nossa um dia teve que ser. Uns dias. Algumas vezes.
Devo a você, meu pai, minha retomada com a Bahia.
Terrenos que passei também a apreciar. Fez eu me apaixonar perdidamente pela Chapada Diamantina. Tarde, você descobriu seu quinhão e sua geografia. Seria lá sua perdição. E tudo se fazia mais belo com suas palavras, seu toque a um lugar já mágico.
Lembra como eu saía a correr trilha acima, enquanto você fazia questão de conversar com tanta gente no caminho? Você gostava demais de uma palestra. Talvez anestesiado pela magia que você me fez absorver, dava de ombros às suas prosas e queria era estar na cachoeira seguinte, na corredeira atrás daquela pedra.
Sabe, quando olho para estes momentos percebo o quanto mudei nas idéias, no pensamento, na percepção das coisas. O maior ensinamento que poderia me proporcionar foi o pensar. Nunca aceitar palavras de ordem. Procurar o debate. Pensar por conta própria. No palco que você mesmo montava, não havia nada nem ninguém que o fizesse descer do pedestal. No que o Direito era bem a sua cara. Na mosca.
De um jeito que me faz, quem sabe um dia, enveredar pela mesma academia. Está vendo como você me puxa pro seu lado?
Algumas influências, sejamos honestos, não tão positivas assim. Culpa de meu avô, que o fez Vitória. Nos falávamos todos os dias. Overdose em dia do rubro-negro.
Iluminado que era, não deveria transmitir este tipo de injúria a novas gerações. Mas qual o quê!, seu neto se esbaldou na ida ao Barradão, vestido de Vitória.
Vovô Caranguejo. Que ficava beliscando o bumbum de meu filho enquanto fugíamos de seu ataque, ele nos meus ombros, rindo de se dobrar.
Porra, pai. E os seus netos?
Orgulhava-se tanto destes pequenos. Agora aqui, lágrimas encharcando o teclado, não consigo pensar em outra coisa. Dos seus netos que estarão privados de sua presença. De seu afeto bruto. De seu sarcasmo.
E eu que nem pude contar como foi a final do basquete nos Jogos Olímpicos? Ainda há tanto a se ver, caramba! E a Copa de 2018, nosso combinado de ir à Rússia?
Eu entendo… O cansaço pesou. A prioridade do intelecto sobre o físico. Mas não aceito. Eu odeio o descaso que te levou. Há muito de egoísmo nisso, claro. Egoísmo coletivo, diga-se. Nós é que ficamos aqui, órfãos. Eu. Meus irmãos. Seus netos. Amigos de Escola Técnica. Amigos novos e velhos. Colegas. Parentes. Todos.
Salvador perdeu tanto de seu encanto… Este pedaço de terra tem que ser ressignificado a partir de agora.
Lutarei para que sua voz não se perca. Que seu olhar não desapareça.
E na parte que me cabe neste latifúndio, você sempre viverá através de mim. Porque não poderá jamais haver maior influência em moldar quem eu sou que você.
Despedida é foda, meu pai. Dói demais.
Você nunca serviu para pai-herói. Era demasiado humano pra isso. Era do seu jeito, e o melhor que eu poderia ter. Porque você era o meu.
Mais do que um pai, perdi o meu melhor amigo.
Te amo, seu sacana.
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Meu pai se foi aos 25 de agosto de 2016. 53 anos de idade. Resultado de um prolongado descuidado com a saúde.
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Olá, Gabriel. Meu nome é Tiago. Fui colega de Paulo na faculdade. Não sei como cheguei aqui nessa página, mas fiquei muito emocionado com esse seu texto. Admirava muito Paulo, sua simpatia, seu humor. Invejo muito sua oratória. Quem dera um dia eu debata como ele. A última vez que falei com ele, infelizmente, tivemos uma leve discussão sobre política. Mas a lembrança que guardo dele é de uma conversa anterior quando ele iria colar grau na faculdade e veio no facebook me perguntar qual música eu achava melhor para tocar no momento em que ele fosse receber o diploma. O dilema era entre “Amanheceu, peguei a viola”, de Renato Teixeira, ou “Tocando em frente, de Almir Sater”. Ele chegou para mim e disse: “blz, tiaguito? olha só…preste atenção: 4/2/2014, colação de grau de direito/ufba. centro de convenções lotado. já terei feito o discurso como orador da turma. hora de entregar canudo. duas opções de música pra este momento”. Achei tão bonita essa expectativa genuína que ele criou sobre esse momento e em tantos outros que experimentamos na faculdade, que não há como dissociar a lembrança que tenho dele de um entusiasmo daqueles que tem a vida vivida de verdade. Abraço. Perdão por qualquer coisa.
Tiago, a colação de grau foi o ápice da vida dele. Criou grande expectativa e se esbaldou.