É impossível não associar manifestações políticas à esquerda. Para entender os motivos pelos quais isso ocorre, é necessário voltar às origens dos termos direita e esquerda.
Quando a Revolução Francesa tirou a dinastia de Bourbon do poder, em 1789, logo foi convocada assembleia constituinte –que durou até 1791– para que os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade estivessem espelhados na carta maior das leis do país.
A organização do parlamento seguiu uma estrutura simples. Os representantes da aristocracia, aliados da monarquia deposta, se sentavam à direita do orador, enquanto os comuns se sentavam à esquerda. Portanto, à esquerda ficavam aqueles que atentavam contra a normalidade do poder instituído. Os que se uniam em protestos. Os baderneiros.
O conceito de esquerda e direita, desde então, evoluiu, mas a raiz pretensa e extremamente redutora de mantenedores da aristocracia x defensores do povo, permaneceu, embora tenha adquirido complexidades que fazem a simplificação ruir, especialmente com o populismo usado para justificar arroubos autoritários.
Foi construído por séculos, portanto, que os anseios do povo comprometiam a regularidade dos donos do poder. A réplica se baseava, como ainda hoje, na economia. Prejudicar os empregadores e os negócios significava a derrocada social, a fome, a miséria, tudo pela falta de emprego. Anos mais tarde, o economista e filósofo alemão Karl Marx criou o conceito da Mais-Valia, e colocou o poder nas mãos dos trabalhadores.
Os motivos de manifestações são quase sempre demandas populares com propósito específico que doem no dia-a-dia da população. Negociação salarial. Melhoria de sistema público. Violência. Racismo. A lista é longa.
Como resposta ao seu atributo subversivo, tomar as ruas significa abrir mão da integridade física individual para oferecer o clamor imagético quando todas as outras opções se esgotaram.
Apenas recentemente, solidificou-se no Brasil o estranho conceito de manifestações a favor. Isto é: gente que vai às ruas para demonstrar seu apoio ao líder eleito e diplomado. Nesta versão surreal de manifestação, fulanizou-se as pautas difusas que caracterizaram as manifestações conservadoras, como a Marcha da família com Deus pela liberdade de 1964, que carimbou o golpe militar.
CADEIA DE EVENTOS
As variáveis que montam a equação das manifestações são muitas e tem pesos e relevâncias distintas em cada local. Neles, no entanto, uma certa cadeia de eventos é verificada.
A primeira etapa é procurar solução em articulação direta com alguém dentro do alcance que possa ajudar a resolver o problema. É quando, por exemplo, um morador tenta conversar com o vereador sobre um problema da sua rua, ou até mesmo quando um vizinho conversa com o outro sobre barulho fora de hora. Um acordo que apele para o bom senso.
Mas nem sempre esta via funciona. E as coisas vão escalando. Até, por fim, tomarem contorno violento. A tomada pública das ruas é a demonstração inconteste de insatisfação coletiva.
A violência como recurso, portanto, é alternativa quando todas as outras não apenas falharam, mas o ressentimento e a raiva acumulados são extravasados para que não se mergulhe na insanidade. É a última arma de resistência à opressão velada ou estrutural, de combate ao abuso.
Em que momento, então, a uma gota d’água transborda o copo? Impossível dizer ou prever o instante, mas é perfeitamente possível compreender se uma construção social caminha para o caos. E um dos principais fatores de catalisação do caos é a repressão das manifestações.
Coibir protestos significar impor um controle massificado que não aceita questionamento. É uma ação de subserviência servida goela abaixo pela dor da censura de opinião, expressada tão veementemente pelos cassetetes, balas de borracha, bombas de efeito moral e prisões arbitrárias.
Do ponto de vista pragmático, inclusive, permitir manifestações é acalmar os potenciais incrementos de insatisfação que podem se tornar revoltas –e aí, simulacros de guerra civil são realidade, vide 2013. Manifestação é, portanto, meio de expressão de manutenção da democracia.
Golpistas não são as manifestações em si. Golpistas são as intenções golpistas, que podem ser materializadas também em manifestações.
O DIREITO DE PROTESTAR
Protestar é parte primordial à democracia. Em artigo de 2017 para o Global PolicyJournal, o filósofo e professor Richard J. Norman elencou 6 razões que, para ele, fazem com que precisemos proteger e exercitar o direito de protestar.
- AS PESSOAS SE DÃO CONTA DE QUE NÃO ESTÃO SOZINHAS: Um dos meios usados pelo establishment para manter seu poder é criando um discurso dominante no qual as visões de dissidentes são excluídas.
- AO PROTESTAR, ALTERA-SE A AGENDA E SE INICIA UM DEBATE: Os que estão no poder podem nos ignorar, mas se houver manifestantes suficientes, eles precisarão de mais argumentos para justificar o fingimento. É nessa hora que o debate começa e pauta o poder.
- EM DEMOCRACIAS, PROTESTAR É UMA VOZ ESSENCIAL PARA MINORIAS: Teóricos clássicos de governos representativos reconhecem que o voto universal ameaça que se imponha a “tirania da maioria”, retirando direitos das minorias.
- ÀS VEZES CONSEGUIMOS GANHAR!: Se há gente o suficiente nas ruas, manter certas políticas públicas se torna inviável. A pressão pública é efetiva.
- ÀS VEZES, GANHA-SE DE MANEIRA NÃO PLANEJADA: Eventos políticos são imprevisí-veis. As consequências de um protesto podem extrapolar o motivo da manifestação, alcan-çando vitórias em temas não relacionados ou vistos.
- ÀS VEZES, GANHAMOS, MAS DEMORA UMA GERAÇÃO OU MAIS: Às vezes parece que não se vai a lugar algum, que a men-te daqueles no poder não vai mudar. Mas protestar cria nova realidade e alimenta uma nova geração que imple-menta a mudança.
Portanto, se alguém um dia perguntar se uma manifestação é mesmo democrática, só há uma resposta intrinsecamente possível: É.
Artigo na edição #1 da Papo de Galo_ revista, em 05 de junho de 2020.
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