No lotado estádio de São Petersburgo, a Argentina jogaria sua sobrevivência contra a Nigéria. Fim de tarde na cidade que já foi capital russa. O sol de través, calor ameno do lado de fora, contrastando com a temperatura fervilhante da torcida hermana que invadiu a antiga Leningrado para empurrar sua seleção.
Por entre frestas da moderna estrutura metálica, um facho de luz penetra, serelepe e breve. O único, o um, o tal. Procura cuidadoso as tribunas da arena e vai ter num diminuto espaço, justamente onde Maradona está. Ele recebe o raio de braços abertos, para ser explodido em mil cores pelo prisma que é Dom Diego. Exultante, a massa alviceleste o idolatra.
(Maestro, aumenta o som da música sacra, sobe o “ó…” gregoriano, porque a querência de Maradona é o divino surreal com um quê de novela mexicana e bolero melado.)
É a mão de Deus, é o Deus encarnado de sua própria igreja, é o anjo caído. É raio, é luz, é estrela e luar, é tarde de sol, é Iaiá, é Ioiô. É fogo, é paixão. E já que o Papa, o intermediário, é também argentino, interceda-se nos cânones católicos, canonize-se de uma vez por todas e crie-se a oficialização do inegável: Maradona é Deus e o Diabo na Terra em torno do sol.
Sua seita, ao fim, teria ares de irrefutabilidade. “Taqui o documento, mais do que santo, é o próprio Deus. Papel passado e registrado em cartório!” O futebol é o seu Evangelho. E como um Lutero dos novos tempos, assumiria de vez o leme de sua religião. Expandiria sua atuação ao mundo, naquela que seria uma igreja, por certo, diferente.
De templos que seguem a arquitetura das mais gigantescas e bregas haciendas latino-americanas. Talvez com uns animais silvestres correndo pela frente. Uma piscina em formato distinto e com azulejos decorativos, em volta da qual os seguidores se reuniriam, sentados em pufes de oncinha (ou de zebrinha ou malhadinho) com genuflexório, entre confortáveis espreguiçadeiras. Em vez de hóstia sagrada, uma porção de amendoim para acompanhar. Em vez de vinho, um shot de tequila e uma cerveja gelada. Abstêmios são hereges.
Nas escrituras proféticas, incorporará lendas e lemas daqui, dali e de acolá, ao discernimento de seu líder supremo. Em vez do pudico e limitante “orai e vigiai, “faze o que tu queres, há de ser tudo da lei” será o mantra tomado emprestado de Aleister Crowley e sua Thelema. Pecado é não se permitir. É efetivamente proibido proibir.
No fim do dia, depois de seu cochilo da tarde, surgirá ele. Atendendo à narrativa minuciosamente alinhavada, recriará este mesmo facho de então, quando será possível ver sua aura em realidade aumentada. Virá, que eu vi, com uma camisa de linho de manga curta, muitos botões abertos, mostrando o peito semi-peludo encoberto apenas por um cordão de ouro. Tatuado, segurará um charuto com uma das mãos, enquanto a outro ficará livre para comandar a batuta do controle dos fiéis.
Na cerimônia, sentaria em sua folgada poltrona. Olharia seu público com um ar um tanto enfadonho. Daria uma longa baforada no cubano presente dos Castro. Observaria a forma da fumaça que expele de sua boca. Somente então professaria seu discurso tão aguardado. “Qué pasa ahí? Ânimo!”
E a horda se ergueria, em volume num crescendo, “Vamos, vamos, vamos, vamos!” As mãos vão balançando, para cima e para baixo, evoluindo em amplitude na medida dos decibéis. Maradona vai se levantando junto. “Vamos, vamos, vamos, vamos!”. Ele grita “no les escucho!” “VAMOS, VAMOS, VAMOS, VAMOS!” No ápice, todos abraçados como se numa arquibancada em La Plata, em transe, absortos na supremacia do Senhor! Por fim, um rojão anuncia um grande banner que se soltaria do mezanino do quarto que dá para a piscina na fazenda. Nele se lê o lema maior sobre a imagem pintada a mão do sacrossanto dia em que São Petersburgo foi sua. E o povo explode numa rave abençoada por seu Deus e bonita por natureza.
Desta igreja eu participaria.
Pois que numa Copa sem um nome que se sobressaia individualmente de maneira indiscutível sobre os demais, e aproveitando os aditivos propostos em leis católicas para elevar El Pibe a santo, faça-se o mesmo com as restritivas regras da FIFA e crie-se o precedente necessário. Porque na Rússia não houve personagem melhor que Dom Diego Armando Maradona. É ele, sem dúvida, o craque da Copa.
Ouvi um amém?
* Gabriel Galo é escritor.
Crônica publicada no site do Correio da Bahia em 12 de julho de 2018. Link AQUI!