Em 12 de janeiro de 2021, Mehdi Hasan, jornalista político britânico, radicado em Washington, D.C. desde 2015, publicou um dos editoriais mais potentes sobre os eventos do dia 6 de janeiro.
Em seu programa The Mehdi Hasan Show, que vai ao ar diariamente na rede de streaming Peacock, uma subdivisão do grupo NBCUniversal, Hasan olha para dentro e, em nome da imprensa, assume uma culpa – embora não seja dele, mas da classe como um todo – por ter permitido e normalizado Donald Trump ao longo do tempo.
Para muitos, foi apenas o evento do ataque ao Capitólio que finalmente fez valer o fato de que, finalmente, como diz FHC, o entrevistado geral da nação, o presidente americano tinha passado do limite.
Os elementos do editorial de Hasan podem ser perfeitamente aplicados à realidade brasileira. Por exemplo, em 2018, a Folha de S.Paulo deixou explícito aos seus jornalista que se evitasse referir-se a Bolsonaro como extrema-direita. Símbolo de uma era de normalização do impensável, o Estadão publicou o editorial mais famoso do Brasil, afirmando se tratar o segundo turno entre um professor universitário filiado a um partido com rejeição gutural a um filhote de ditadura que além dos evidentes atrasos cognitivos, tem dentro de si uma pulsão de morte típica de psicopatas.
(Deixemos, no entanto, a caracterização psiquiátrica dos distúrbios do por enquanto presidente para momento mais oportuno.)
O “mercado” embarcou no canto da sereia do liberalismos pauloguediano, e hoje colhe os frutos de uma crise interminável, quebra-quebra generalizado, desemprego e, cereja do bolo, a aceitação da obviedade de que reformas liberais não convivem com quem tem alma ditatorial e exalta torturador.
Todo mundo sabia. Todo mundo avisou.
Alguns veículo de imprensa, porém, duvidaram. Conforme determina a filosofia de Luciano Huck, “vai que ele aprende”.
Mais burro é aquele que acredita no burro. E quem tenta buscar trama racional em quem opera na escuridão do conhecimento, bem, é mais louco que o louco.
A realidade do jornalismo nacional é de redações cada vez mais enxutas, focas tocando pautas pesadas, baixo orçamento e perspicácia oprimida para não afetar a quantidade de likes e de eventuais patrocínios.
Só que, como diria Millôr Fernandes, esse, sim, filósofo de respeito e pensador que vale a pena ler a atemporalidade de seus escritos:
“Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados.”
Jornalismo que não é oposição tem outro nome: é assessoria de comunicação. E estes que se mantêm no modo ‘veja-bem’ são agentes da infâmia que catapultam a permissividade a Bolsonaro.
A estes, traduzo, pois, o editorial de Hasan. Mesmo que nunca leiam, ou que sequer entendam a extensão do erro que cometem.
Nos últimos dias, muitos de nós na mídia temos acertadamente criticado os Republica-nos por seu papel na insurreição da última quarta-feira (6 de janeiro de 2021) e por possibilitar os piores excessos de Donald Trump. O que realmente não fizemos foi dar uma boa olhada em nós mesmos, em nosso próprio papel em capacitá-lo ao longo dos anos.
Porque o que aconteceu na semana passada não saiu do nada, não foi sem aviso ou precedente.
Ficou claro desde o primeiro dia que uma presidência de Trump seria autoritária, fanática, seriamente desonesta, fora dos limites de qualquer presidência moderna anterior. Ficou claro que não deveríamos normalizá-lo.
Mas nós o fizemos, ano após ano. Permitimos que ele e seus fantoches inundassem a zona pública com tolices.
Nós cobrimos cada controvérsia, mas então seguimos em frente. Demos-lhe permissão repetidas vezes, mesmo quando terroristas domésticos realizaram ataques em seu nome.
Nós o avaliamos com displicência, e continuamos apertando o botão de reiniciar.
“Oh, é um novo dia para Trump!”
“É um novo tom!”
“Ele é um novo homem!”
“Este é o dia que ele se tornou presidente!”
O racismo de Trump ficou totalmente à mostra desde o momento em que ele desceu a escada rolante em 2015 e chamou os imigrantes mexicanos de “estupradores”. E, no entanto, até muito recentemente, as organizações de mídia se curvaram para evitar dizer a palavra com R. Em vez disso, ouvimos ‘racialmente carregado’, ‘racialmente tingido’, ‘racialmente divisivo’, ‘racialmente insensível’. Por que eles não poderiam ter dito simplesmente racista?
Que tal a palavra F? “Como você pode falar fascismo?”, as pessoas me disseram quando chamei Trump de fascista na TV a cabo do horário nobre há apenas 6 meses?
Bem, agora, depois de uma multidão fascista em volta da sede do nosso governo, todo mundo está dizendo isso, incluindo pessoas que trabalharam para o presidente.
“Quem poderia saber?“
Bem, a triste realidade é que muitas vozes negras e de outras etnias na mídia, aqueles de nós que lutaram contra o racismo e a supremacia branca por toda a vida, apontamos Trump muito antes dos outros, muito antes do ataque ao Capitólio e sem muito suporte de nossos pares.
É por isso que a diversidade é importante. A mídia americana foi branca demais por muito tempo. E estou feliz que as coisas estejam mudando, inclusive aqui na NBC, e gostaria de acreditar que sou um produto dessa mudança.
Mas, A, ainda há um longo caminho a percorrer e; B, isso não é um jogo, não é um exercício de marcar caixas, tem consequências reais.
Quando você tem a supremacia branca em ascensão, você precisa de jornalistas que estejam cientes da ameaça que representa e estejam dispostos a denunciá-la.
O que não deveríamos ter feito é uma higienização da supremacia branca e do fascismo. Lembre-se do perfil do “vizinho nazista” no The New York Times, “o cara que gosta de assistir Seinfeld”. Lembra do perfil do quase nazi com ‘boa aparência de rei do baile de formatura’, que estava tentando tornar o racismo ‘legal de novo’?
Olha, não me interpretem mal. Organizações de mídia, incluindo jornais como o The New York Times e revistas como a Mother Jones fizeram reportagens investigativas excelentes durante os anos de Trump, revelando escândalo após escândalo. Repórteres e fotógrafos no Capitol na semana passada arriscaram suas vidas para nos trazer a notícia daquele ataque histórico e horrível.
Mas quando se tratou de conectar os pontos editoriais, quando se tratou de dizer a verdade aos nossos leitores e telespectadores, sobre a natureza autoritária e, sim, fascista desta presidência, quando se tratou de lutar contra o racismo e o nacionalismo motivando ambos este presidente e muitos de seus partidários, quando se tratava de dizer a verdade, não sobre polarização abstrata, mas sobre o extremismo de extrema direita de um partido em particular, muitos na mídia o reprimiram.
Em algum ponto, temos que aceitar nossa culpa. Donald Trump e sua turba conseguiram chegar até aqui porque nós, a mídia, falhamos. Nós falhamos com você. Muitos jornalistas e organizações de notícias optaram por “seus dois lados”, “é um novo tom”, “é apenas retórica”, “são apenas alguns malucos marginais”, por muito tempo.
E então, olhe, se você trabalha na mídia, e só agora é o momento em que você está realmente chocado com Trump ou com os apoiadores de Trump, só agora é o momento em que você acha que ele foi longe demais, você tem que se perguntar; “porque?” Por que você fez vista grossa para a ameaça por tanto tempo?
Porque nossa democracia está agora em jogo e o que acontecerá da próxima vez que uma figura como a de Trump chegar perto de um cargo importante neste país? Vamos falar a verdade ao poder? Ou vamos ecoar a visão totalmente cínica expressa pelo então presidente da CBS Leslie Moonves, quando questionado em 2016 sobre o fenômeno Trump, “ele pode não ser bom para a América”, disse ele, “ mas é muito bom para a CBS. ”
É aí que está o fim da democracia. E cabe a nós, o quarto Estado, fazer um acerto de contas. E para fazer melhor. Para fazer muito melhor.s
Artigo para a Papo de Galo_ revista #10, de 29 de janeiro de 2021, páginas 20 a 23.
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