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Meio-dia

Meio-dia

Eu saía da escola por volta desse horário, meio-dia. 1999. Cidade pequena, escola pública do lado da praça central da Igreja Matriz, com coreto e tudo, porque cidade pequena sem coreto não tem charme.

Nem precisava ter relógio. Badalava o sino da igreja, “Meio-dia! Meio-dia!”, gritava o Paulo a plenos pulmões.

Paulo era um senhor que vivia a limpar a pracinha central de Santana de Parnaíba. Cabelos brancos, sempre de chinelo, calça e camiseta. Não muito certo das ideias. Aos que o atormentavam, corria atrás com vassoura em posição de ataque, passinhos curtos. Adolescente é bicho ruim.

Via-o apenas de passagem, no caminho para casa. Ele não dava papo, o que nutria histórias incríveis em minha cabeça de estudante do segundo ano. Nada dele sabia, a não ser o que aqui já está. Por que haveria, então, o trauma do meio-dia em mente tão disfuncional?

Quando ainda criança, seu pai chegava em casa para o almoço, vindo da roça. Pai ausente, o almoço era o único momento que o via presente e vulnerável, mistura de cansaço, rádio ligado e bucho cheio, a cochilar na cadeira de balanço. A única hora em que a dureza da vida lhe amansava o trato.

Tinha sido coroinha. Dava turno pela manhã com o padre da paróquia. O badalar acordava o pároco do transe, hora exata de vestir-se e correr rumo à libertação.

Era perseguição. Na última aula do dia sempre escalavam o professor Palhares. Chato… Chato que reescrevia o significado de ser chato. Chato com nome de chato. Tocava o sino da escola, adeus Palhares, até que enfim.

Ganhou um relógio, o primeiro e único que pôde ter em toda a vida. Nunca funcionou. Quebrado, apontava sempre o dois ponteiros para cima. Ouviu dizer em algum lugar que mesmo um relógio quebrado estava certo duas vezes ao dia.

Eram felizes, Paulo e Serafina. Ou pelo menos assim ele achava. Iam casar num sábado pela manhã, às 10:00h. Arrumou-se todo, família orgulhosa, menino-homem! Serafina atrasava. “Noivas, fazer o quê?”, pensava consigo. De família humilde. Ambos. Terno emprestado do vizinho que certa vez fora a um enterro no Araçá. Meia hora. Expectativa na igreja. Perto de uma hora de atraso, burburinho se formava. À uma hora e meia, alguns convidados começaram a ir embora, cabeça baixa evitando contato visual e a expressão inconfundível da pena. O badalo das duas horas o colocou em choque permanente.

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