A gente tropeça em grandes coisas disfarçadas de cotidiano todos os dias. Camufla-se como parte da rotina pulsante do comum. Está em tudo ao nosso redor. Na matemática, na engenharia, na física, na química. E na filosofia.
Muitas destas interações filosóficas, o que poucos sabem, é que foram, se não criadas, ao menos aperfeiçoadas na Bahia. Se entendemos o mundo tal qual se estuda hoje em dia, foi na velha cidade da Bahia, comendo água e lagartixando, que uma nova percepção de mundo se fez. E suas ramificações estão por aí espalhadas, sem crédito.
Assim se diz que o filósofo prussiano Immanuel Kant jamais deixou Könisberg, sua terra natal, onde estudou a vida inteira e também onde morreu. O fato escondido dos olhos da humanidade, no entanto, é diferente. Quase a vida inteira seria mais apropriado.
O rapaz estava empolgado em desenvolver um novo conceito de dignidade moral que rompesse com o modelo aristotélico e o modelo teológico.
Qual o quê? Não sabe do que estou falando? Pois, explico.
Para Aristóteles, ser uma pessoa considerada moralmente digna dependia de atingir o nível de excelência ao que chamava de virtude. Virtude era um dom natural, um talento inato. “Há de haver algo diferente”, pensava o germânico, “não podemos ser escravos de nossa natureza.” O modelo teológico, liderado, claro, pela Igreja Católica, dizia que o que estava escrito na Bíblia era a representação da moralidade digna.
Kant teve um bloqueio criativo severo, deu branco. Por mais que tentasse, não conseguia formular uma frase qualquer. Nada fazia muito sentido. Era inverno e ele entrou numa certa depressão. Os aspectos que o fizeram entrar num navio em Lisboa rumo a Salvador são incertos. Há os que digam que uma comitiva da Universidade de Coimbra esteve em visita a Könisberg, e encantou o alemão com as coisas da terra brasilis. Uma segunda corrente afirma que ele foi sedado numa intervenção dos amigos e só foi acordar em pleno alto mar, já sem poder escapar. Os mais lépidos asseguram que ele se encantou com as ancas de uma mulata, e saiu correndo atrás dela onde quer ela estivesse.
Chegou a Salvador sem falar uma palavra de português, mas não demorou a achar quem sua língua falasse. A questão não era necessariamente o idioma, no entanto. Kant era um tanto prolixo, e quando falava, mesmo algo simples quanto “estou com sede”, entrava numa de divagar e dar rodeios, que quando notava ou estava sozinho ou sua audiência dormia.
Em resumo: Kant era chato. De galochas.
O bloqueio continuava. Era natural, entretanto, dedicado que estava a aprender o português e poder se comunicar com mais gente.
Dispôs-se a tanto – catedrático na Prússia não poderia se deixar abater por algo tão mundano – e pouco tempo depois estava arranhando um português macarrônico, carregado de sotaque. Percebam que foi, então, que pôde adquirir um pouco de simplicidade ao seu falar, pois mais o que isso não era possível.
Com a meta “falar português” riscada de sua lista de coisas a fazer, voltou-se para sua obra. Cansado depois de tanto pensar e nada produzir, decidiu parar para um café num casarão na Vitória. Garçom veio atender. No que Kant balbuciou palavras com erres destacados, o um chamou o outro “ô, fulano, atende o gringo pra mim, vá, na moral.” O outro rapidamente chegou, e assim se fez.
Fez-se brilho no olhar de Kant.
“Na moral.”
Ele parou para entender aquele gesto, aquele apelo, aquela frase tão simples e cheia de significado.
Na moral era uma forma de dizer “faça isso por mim sem haver interesse retributivo.” Sem esperar nada em troca. Era o ápice da boa vontade, aquela feita porque é de alma limpa. E já se pede assim na largada, da boca do solicitante, para não haver falha de entendimento.
Ora, ora, ora!
Pelos próximos dias Kant ficou enfurnado em seu quarto, escreveu rascunhos de tomos e volumes sobre a moral, agora afirmando que estava pautada em 2 pilares: o trabalho e o uso que você faz dele – se para o bem, portanto – e no desinteresse de seus atos. Somente um ato de coração aberto e desinteressado poderia ser considerado moralmente digno. Conceitos que remoldariam a cultura ocidental desde então e até hoje.
Nas publicações futuras – dos rascunhos que se se transformaram em obras que escreveu já de volta a Könisberg, no que o retorno ao alemão como primeira língua lhe fez retomar o seu prolixismo incompreensível tradicional -, nem um crédito, nem um muito obrigado à Bahia ou ao garçom, nem uma menção a como a ideia lhe surgiu. Nada. A imagem de recluso fazia bem para a sua reputação de excêntrico. Na Bahia ficaram todos os que seguem pedindo favores “na moral, véi, vá”, inconscientes de seu impacto filosófico.
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