Um dos muitos lugares que pudemos chamar de casa foi o apartamento do Vale das Flores, em Salvador. Nos 14 anos de nascência e crescência na velha cidade da Bahia, quatro são as moradas de que lembro com mais destaque: a casa de meus avós maternos no Buraco da Jia, a casa do Santo Antônio, o apartamento no Vale das Flores e o do Costa Azul. Não duvide, foram muitas residências mais. Na maior parte delas, a estada era do tamanho do atraso de pagamento de aluguel que o proprietário conseguia aturar. Tenho flashes vezeiros de um na Rua Chile ou próximo dela, embora a minha esparsa memória de infante não permita afirmar que ali moramos.
No Vale das Flores, conjunto de prédios numa travessa da Bonocô, floresceram muitos aspectos de nossa infância. Criança no sentido serelepe da palavra. Foi lá que um dia meus pais foram chamados pelo condomínio para conversar sobre certa brincadeira de meus irmãos mais novos. Carregados de pequenas pedras de brita, subiram ao telhado e de lá despejavam as pedrinhas, provocando prejuízos mil nos pobres carros lá embaixo.
Foi com alegre surpresa que descobri que um amigo de escola morava no condomínio em frente ao Vale das Flores. Entre nós, um barranco em subida ao vizinho, sem muro. Muros, na época, era coisa de condomínio de alto luxo. Até então, Salvador era trabalhada na integração e na inocência. Prometi ir vê-lo.
No caminho, o barranco. Alto, mais alto que eu. No dia, havia chovido. Eu tinha duas opções de subida: ou por aquilo que imaginava ser escada, nunca me passou ser uma vala para escoar água da chuva; ou o barro molhado do barranco quase sem grama. Decidi pegar a “escada”.
Comecei até com certo sucesso. Estava limpo e seco! Em pouco tempo, no entanto, tudo mudou. Os degraus, muito altos, dificultavam a subida. Em alguns, era necessário apoiar as mãos no piso acima e escalar ao próximo nível. Mas havia chovido… As mãos começaram a encharcar. Por causa do apoio para subir, a camiseta roçava no cimento, molhava-se e sujava-se. Quando em vez, conseguia de supetão subir para afundar os pés numa poça de água acumulada. Noutra, perdi o equilíbrio e consegui me apoiar na lateral suja de terra. Fato é que quando subi eu era a visão do lamento. Sujo, fedido, rasgado, maltrapilho. Desisti de ter com meu amigo naquela tarde, voltei com o rabo entre as pernas para casa.
No dia seguinte expliquei que não consegui ir, que “não deu”. Nada de detalhes. Resiliente e esperançoso do meu aprendizado, prometi de novo, “hoje eu vou!” No meio da tarde, segui eu, peito inflado, orgulho ferido, nada me impediria. Olhei praquele barranco todo, e, malandro, desta feita, segui pelo barro semi-seco. Não tinha como dar certo. Toda estripulia de menino semi-amarelo é punida pela vida.
Comecei! No primeiro passo, o tênis pisou em falso e já fui de joelho na terra, sujando a bermuda. A terra úmida dificultava a aderência. Quase cada tentativa era presentada com um escorregão. Certo momento, já no meio, deslizei alguns metros para baixo, peito na terra e braços abertos, limpando a sujeira com a minha camiseta. Desistir, todavia, não era opção. Fui, me segurando em pequeno tufos e raízes, cuidando ao máximo para não cair. Quando, enfim, cheguei ao topo, me senti Rocky, o Lutador! Pulava, gritava! Eu era um sucesso!
Consegui, além da escalada, outra proeza: eu estava ainda mais sujo que o dia anterior. Sabedor da minha impossibilidade de sujar o sofá alheio, baixei a cabeça e desci o barranco num esqui-bunda desengonçado.
Na escola, no dia seguinte, fugi do meu amigo como pude. Não seria possível disfarçar a minha vergonha.
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Hoje entre os prédios há um grande muro. Mal é possível ver o prédio vizinho da rua. Talvez seja melhor assim. Para não dar ideia nem ousadia, e eu não tente recuperar o prejuízo da honra maculada.
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