Cristão.
Patriota.
Conservador.
Armamentista.
Antiesquerdista.
Anticorrupção.
A descrição de perfis bolsonaristas no Twitter segue, em sua maioria, a mesma linha. E segue um modelo que habilita estas pessoas a se elevarem a uma superioridade moral autoevidente. Afinal, como dizer que ser cristão é algo ruim? Ou patriota? Ou anticorrupção?
O quase golpe americano
No dia 6 de janeiro de 2021, uma horda insuflada pelo discurso apocalíptico do então presidente dos EUA Donald Trump, marchou rumo ao Capitólio para impor sua vontade de garantir o mandato de Trump, nem que fosse na marra. Para eles, não havia dúvida da realidade autoevidente do propósito. O próprio nome do evento, March to Save America (Marcha para salvar a América) indicava a dita nobreza do ato. Para aqueles fanáticos apoiadores não era, pois, uma insurreição, tentativa de golpe de estado, muito menos ato de terrorismo doméstico. Era um exército que agia para salvar o país, tão afeito a mensagens patrióticas de heroísmo militar.
A manipulação de Trump demonstra o poder que um argumento autoevidente possui. Mas para chegar a este ponto é preciso um trabalho extenso de mineração de dados e manipulação de massas.
Os engenheiros do caos
O processo de formação da nova maneira de se mobilizar o debate público foi descrito pelo escritor e jornalista italiano, porém parisiense de nascença, Giuliano da Empoli no livro “Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições” (Vestígio, 2019).
O livro busca analisar como um ressentimento existente na sociedade, mesmo que não se materialize em ponto específico, pode ser identificado, manipulado e então direcionado com uso de tecnologia avançada de mineração e análise de dados. E estas informações, ou pontos de dados, no jargão tecnológico, nós mesmos oferecemos diariamente nas redes sociais, nos sites em que navegamos. O desafio era compreender, a partir destes dados, aspectos de comportamento que indicassem maior ou menor sugestionabilidade a diversos temas. Dessa maneira, em vez de propor comunicação em massa, os gestores de divulgação de material político impulsionariam conteúdo adequado especificamente para cada pessoa. Como diz um amigo meu, o nicho é a nova massa.
A efetividade dessas campanhas altamente especificadas é muito maior. Porque une apelo emotivo – o ressentimento e o ódio são grandes mobilizadores – a uma comunicação sem ruídos, que não se perde em comunicados genéricos demais, ou fora do escopo de interesse da pessoa. É tiro certeiro para laçar a pessoa e levá-la para um mundo particular em que a verdade não é exatamente o ponto central do debate. Exclui-se a racionalidade por inteiro, restando apenas sensações e sentimentos. E no caos, tendemos a nos agarrar ao que nos é conhecido.
Ao nos conservarmos no conhecido, nos fechamos ao externo. Vai-se além: o outro é objetivamente uma ameaça à compreensão pessoal. Afinal, ser-se diferente significa oferecer alternativa, algo que, num universo de ressentimento e ódio, não pode existir. Enxergar possibilidades amplia horizontes, expande o pensamento, aproxima o outro e tende a provocar questionamentos de certezas pessoais.
A formação dos chamados cinturões vermelhos nos EUA, bem como o efeito de votação do Brexit no Reino Unido, indica a maneira como este aspecto se dá. Nestes casos, criou-se vasto conteúdo de ataque aos estrangeiros que estão “invadindo o país e deturpando a tradição local”. Nessa linha, surgiram muitos conteúdos islamofóbicos – a origem da bandeira de Israel nos perfis vem dessa origem, evoluindo para uma retórica sionista que eleva o estado de Israel ao mundo ideal, mas que pouco tem de adequação à história e realidade brasileira. É interessante perceber, no entanto, como se dá o comportamento de voto. As regiões que mais aceitam o conteúdo islamofóbico são justamente aquelas em que praticamente não existem comunidades islâmicas. Temos, assim, que os grandes centros, que convivem mais abertamente com essa cultura, não aceita o conteúdo por conhecer mais dos impactos dessa cultura, enquanto o interior, fechado no medo, rejeita o que não conhece.
A última etapa da evolução do chamado ao fanatismo se faz pelo brado do ódio contra o outro. Cria-se um elemento fantástico, difuso, que pode ser personificado no inimigo da vez. Assim, em vez de um alvo certo, todo mundo é um, potencial agente do globalismo, do comunismo, de uma rede internacional feita para derrubar os valores essenciais de uma nação.
Inicia-se, portanto, na identificação do ressentimento, evolui-se para o medo do desconhecido e finaliza como chamado para propagação do ódio. E os elementos deste ideal de nação sob perigo se baseiam nos 3 pilares do fascismo: Deus, Pátria e Família. Com o componente adicional de Liberdade, mais bem descrita como Propriedade.
Neofascismo
Deus; Cristão.
Pátria; Patriota.
Família; Conservador.
Os elementos descritivos dos perfis bolsonaristas seguem fielmente aqueles que sempre pautaram o fascismo original, que veio ao Brasil por meio de Plínio Salgado e sua Ação Integralista Brasileira (AIB). Os camisas verdes – ou galinhas verdes, como passaram a ser pejorativamente chamados – eram despersonificados, sendo, os soldados rasos do integralismo, apresentados de maneira genérica.
A estrutura integralista tinha outros requisitos. O culto exagerado à personalidade do líder, organização hierárquica severa e submissão inquestionável aos superiores eram alguns destes requisitos. Não à toa esta estrutura segue à vista no meio militar. O militarismo é pilar do integralismo, assim como é hoje pilar hoje do neofascismo.
Em seu auge, o Integralismo uniu milhões de brasileiros em suas bases, além de ter conseguido entrar no quarto de Getúlio Vargas numa tentativa mal sucedida de assassiná-lo. Este assalto ao Palácio do Catete, no Rio Janeiro, aconteceu em maio 1938, no que se ficou conhecido como Intentona Integralista. O movimento tinha sido traído por Vargas, tendo ficado de fora da organização de poder com o Estado Novo, o golpe dentro do golpe. Plínio Salgado foi exilado e, sem o líder e sob violenta repressão, o movimento perdeu força.
Logo, o fascismo integralista quase conseguiu fazer o seu golpe de estado, algo que o comunismo nunca esteve perto de conquistar. No imaginário nacional, no entanto, cabe à esquerda a alcunha de golpista, sendo que literalmente todos os golpes de estado no Brasil tivessem ação direta do exército.
A veia militar do fascismo contribuiu para demonizar a esquerda. Com a Ditadura militar brasileira (1964-1985), a esquerda foi o argumento do golpe, escondendo-se atrás da Marcha da Família com Deus pela Liberdade – que neste 2021 foi revivida com mesmo nome.
Mas de onde se extrai liberdade em regimes de exceção?
Liberdade = propriedade
A narrativa da Ditadura Militar foi o pilar para se mover o entendimento de liberdade. De início, vinha do medo: apoiar o golpe e a ditadura era condição para se livrar do comunismo, que priva as pessoas de ir e vir. Assim, estar sob um regime de exceção real era a condição para que não se vivesse sob um hipotético regime de exceção. Mas fez valer-se como realidade quando contorceu o conceito de propriedade privada.
A propriedade privada é pilar do sistema capitalista. E a ditadura explorou isso, numa repetição que permanece até hoje. Guilherme Boulos, por exemplo, sofre alta rejeição por conta do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), que tenta fazer valer a lei garantida na Constituição de uso social de imóveis desocupados. A concepção da rejeição ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surge do mesmo ponto: de que deve ser garantida a proteção da propriedade privada, mesmo que esta posse esteja em desacordo com a própria Constituição. Porque, acima de tudo, o dono do imóvel ou da terra deve poder fazer o que quiser com seu bem.
Confiscá-lo significa romper uma premissa superior, pois interpretativa. Adicionalmente, a Constituição cidadã de 1988 não foi escrita por militares; foi escrita justamente para proteger a democracia. Logo, uma vez deturpada a origem, a lei nem deveria ser considerada, pois feita pelos “outros”.
Outro ponto que permeia o imaginário brasileiro é o milagre econômico do fim dos anos 1960 até o começo dos anos 1970. Apesar de ter durado apenas 3 anos, é tratado não como exceção, mas como regra da gestão econômica da Ditadura. Gerou enorme desemprego, inflação galopante, mas por controlar a comunicação, o dito milagre prevaleceu.
Assim, abandonou-se o conceito de liberdade como liberdade de expressão, de ir e vir, ou garantia de direitos fundamentais. Liberdade passou a ser sinônimo de Propriedade, que deve ser exaltada e defendida. Nem que seja à bala.’’
A prototipagem do cidadão ideal
A adequação à força solidificou o conceito de cidadão ideal. Alguém cumpridor das regras, patriota obediente à força do exército – instituição naturalmente soberana da moral, pois derrotou o vilão comunista; e se soberana moralmente, é também em essência anticorrupção, pois em seu meio mal não há de prosperar –, temente a Deus e trabalhador. Isso criou o crescimento das construções autoevidentes de comportamento. Se o modelo ideal de cidadão é cristão, militarista, patriota e capitalista – no sentido de defensor da propriedade privada inviolável –, logo quem pular fora dessa linha é, automaticamente, inimigo. A Ditadura, portanto, estreitou esse conceito de inimigo, que passou a ser potencialmente qualquer pessoa.
Por muito tempo, esta herança esteve de certa forma escondida. Conhecer as diferenças de outras pessoas com o modelo ideal de cidadão exigia ter contato direto com estas pessoas diariamente, o que era impossível. Até surgirem as redes sociais e passarmos a disponibilizar nossas informações e opiniões à vontade, acessíveis a quem quisesse ver e ler.
O perfil do brasileiro, contudo, pouco tinha mudado. Ele só estava agora mais visível. E quando estas pessoas, que herdaram o conceito de modelo cidadão, viram que praticamente todo mundo estava fora do molde, com o aditivo do cenário econômico em retração e a comunicação em massa da Lava-Jato vilanizava a esquerda – ela de novo! Chama os militares! –, o desespero bateu. Porque na simplificação de sinapses para equações complexas, resumiu-se o ocorrido a “a esquerda está quebrando o país e destruindo a família”.
O exemplo dos EUA
Com os recursos que jorravam das organizações internacionais de financiamento à mineração de dados – via Steve Bannon e outros financistas da extrema-direita – o brasileiro era um prato cheio para a manipulação direta. Havia susceptibilidade e sugestionabilidades demais para serem ignoradas. E a vitória de Trump nos EUA em 2016 confirmou a possibilidade de efetivar o golpe “por dentro”. Qual seja: obter a liderança política por meio do voto, e uma vez como dono do poder, minar as instituições para que se recorra à última instância da implantação da Ditadura popular. Ou, como definiu Viktor Orbán, ditador húngaro que é um dos precursores da atuação da extrema-direita, democracia iliberal.
Hungria e Polônia, porém, não são exatamente países que se almeja se tornar. Para isso, era preciso uma potência mundial – seja econômica, militar ou cultural – de referência. E quando os EUA sucumbiram ao feitiço da extrema-direita, outros projetos se cacifaram.
O controle da narrativa autoevidente
Tomar o poder tem um benefício superior. Estar constantemente nos holofotes – tática levada às últimas consequências na cartilha de Steve Bannon, promovendo uma blitzkrieg de absurdos e retrocessos – por estar no cargo mais alto da política mundial levava ares de formalidade às falas. De estúpidas, passaram a se tornar, se muito, polêmicas. Normalizou-se, pois, o discurso extremista.
E ao trazer para o centro do debate impropérios que deveriam pertencer somente ao submundo de negacionistas, exacerbou-se a violência retórica como método comum. Banalizou-se a agressão, a ofensa. Estas se tornaram elementos aceitáveis dentro de um desafio maior imposto pelo globalismo (sic) e marxismo cultural (sic). Mais até que aceitáveis: necessários.
A partir de uma prototipagem de cidadão ideal que vilaniza o outro, e pares extremamente violentos – vide tática troll de figuras como Olavo de Carvalho – os suscetíveis à atração da narrativa da extrema-direita foram encaminhados a um modelo de comportamento que somente se baseia em premissas autoevidentes, mas que não se fundamenta em fatos. Ela toda é um construto.
Assim, pela pressão direta ou indireta dos seus, os sugestionáveis procuram se enquadrar no modelo ideal. Seja no amor ou na dor, temendo ser alvo de ataques dos diversos gabinetes do ódio comandados pelo gabinete-mor no terceiro andar do Palácio do Planalto.
E conforme entendimento psicanalítico, quanto maior o esforço para reprimirmos em nós mesmos aspectos que consideramos inaceitáveis, maior será a violência com a que vigiamos os comportamentos fora da curva de quem está fora do núcleo.
Mas política não se faz somente com ideias. Para se fazer política, é necessário pessoas. Seitas precisam de líderes que personifiquem essas qualidades. Ou que pelo menos consigam passar a ideia de que personificam essas características autoevidentemente boas. Pessoas podem seguir ideias, mas seguem com mais ênfase outras pessoas.
Apareceu, então, Jair Bolsonaro.
Personificação: o último passo à insurreição
Para que se solidifique um conceito de cidadão modelo, é necessário que se forje um cidadão modelo. Jair Bolsonaro percebeu essa brecha e a aproveitou. E como detalhado anteriormente, não há necessidade de que este cidadão seja baseado em fatos, mas em conceitos.
Como militar, ele traz consigo a aura de patriotismo, disciplina e retidão moral. Contudo, bate continência para a bandeira americana, é terrorista expulso do Exército e possui diversas acusações de corrupção e crimes comuns ou de responsabilidade.
É o rústico homem provedor, modelo de cidadão que protege o que é seu.
É cristão, apesar dos vários divórcios e rupturas dos preceitos da fé, “mas olha quanto pastor o apoiando, eles não apoiariam se ele não fosse especial”.
E num esforço retórico impressionante, suas falas mais abjetas foram de maneira bem sucedida convertidas em um bonachão espontâneo, o tiozão do pavê, numa figura estranhamente simpática – embora não o seja.
Com suas falas agressivas quando confrontado, Bolsonaro elegeu inimigos importantes, especialmente o “tudo isso daí”. Ele era, enfim, o cidadão ideal sufocado pela normativa politicamente correta.
Atacar Bolsonaro, portanto, significa atacar estas premissas do cidadão ideal, estando o opositor do outro lado da força, vilão de maneira autoevidente, alguém que precisa ser combatido: comunista, globalista, que “perdeu a boquinha”, etc., sempre com palavreado chulo, de maneira a dinamitar o debate.
Bolsonaro assume, assim, a posição de líder de sua seita, sacerdote de sua própria religião, que batalha pela manutenção de valores conservadores, do Brasil real, do Brasil ideal, que tem nele o vértice, a convergência, a voz e a vida.
Só que o efeito deste comportamento irracional é tão mais forte quanto mais ampla for a base de apoio. Com as sucessivas tragédias por ele capitaneadas, boa parte de sua base eleitoral de 2018 abandonou o barco. Os que restam precisam lançar mão das táticas mais espúrias para manter a sensação de tamanho e de unidade. Sobram os mais fanáticos. E quanto mais se sentirem os últimos, mais veem crescer internamente o sentimento de ser mártir, de matar e morrer pelo seu líder, que foi abandonado por tanto, mas tem naquele apoiador, um dos últimos entre os últimos, a honra da glória sangrada mesmo quando a derrota era inevitável.
São estes os mais perigosos.
Os sinais de momento apontam para um bolsonarismo menor. Sobrará, pois, a horda mais engajada, que virá munida não apenas de discurso autoevidente, mas também de armas. Espera contar, e é para isso que Bolsonaro trabalha, com as polícias para que seja feita a sua vontade.
Não é exagero, portanto, entender que estamos perto do último passo rumo à insurreição. Ela está à nossa porta.
Há três batalhas em curso: uma em que as instituições rebatem como podem os ataques do bolsonarismo; outra que virá como insurreição; e uma terceira para restabelecer o discurso autoevidente de sinal invertido, ou seja, que Bolsonaro seja tachado como autoevidentemente a pior opção possível para o país.
Ensaio publicado na Papo de Galo_ revista #13, de 17 de março de 2021, páginas 20 a 28.
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