Neruda que me perdoe. Subtrair o título de sua biografia pra alinhavar um editorial tão lido quanto significante — do nada viemos, ao nada retornaremos, é, portanto, lógico supor que nada também somos enquanto somos — deveria ser proibido pelos cânones literários. Mas, ora, se tudo é nada, que importância há de ter inútil delito.
Eis, pois, a verdade que se espalha nas salas e quartos de lares Brasil afora, no choro sozinho no banheiro, no mergulho no trabalho para distrair da escolha de vida que se esvai de sentido pela desimportância do consumo. Minha gente:
Confesso que cansei.
Porque chega uma hora que construir lógica para o que tem acontecido é esforço que exige demais, e insignificantes perante as coisas da vida, abandonamos a lida para viver como dá, como se aguenta.
Não vivemos, sobrevivemos.
Pois.
Veja bem, tenho tentado. Maratonei as séries que gosto, algumas ainda estou vendo. Aqueles filmes bacanas? Também. Lido tenho muito, estudado, ouvido, ingerido. Ligo sempre que possível para as pessoas queridas, para na telinha do telefone ou do computador, aplacar um pouco da saudade que não cabe mais em mim.
Transbordei de saudade.
Passamos dos 120 dias de isolamento. Desde 16 de março não sei o que é abraçar, tocar, sentir outra pessoa que não a minha esposa. O que não é pouco: amo incondicionalmente a patroa, mas conexão humana unitária é, pra mim, insuficiente.
Se liga, malandro: 4 meses inteiros saindo apenas pra mercado. Sobrevivência.
No começo dessa quarentena interminável, recuperei Cazuza afirmando que “viver não é mais tão bacana quanto a semana passada.” Ainda havia então, vê-se, esperança de viver. Pff. Sobrevivemos.
Pra onde se escolhe olhar, chuva de irresponsabilidade. Dos governos em qualquer esfera, da população em estado constante de negação, das curas milagrosas, da derrocada da civilidade e do quebra-quebra econômico-financeiro que nos põem à beira do colapso, que, não me entenda como mensageiro do apocalipse, virá que eu vi (beijos, Caetano).
Mas, para muitos, não tem nada pra ver.
No que os dias vão se acumulando, o mesmo cenário, as mesmas vozes, o mesmo noticiário. Estamos num dia da marmota sem fim, num isolamento à brasileira que se promete infinito.
Há alguns anos tinha um programa de rádio aqui em São Paulo com um quadro de humor em que a cidade parou por completo num congestionamento. Todos os dias, o CET multava os carros parados na faixa, desrespeitando o horário do rodízio, e por aí vai. As pessoas interagiam naquele espaço, se conheciam e se tornavam grande amigos ou inimigos, e lá permaneciam, na esperança de que um dia as vias voltassem as normal, e circulássemos livremente. Mas todo dia era a mesma coisa, e lá vinha o CET e seu talão.
O enredo da sobrevida sobrevivida no Brasil de 2020 é como este. Estamos presos num continuum em que sair de um problema é ver-se apenas entrando em outro.
O acúmulo da insensatez quebra a corrente das sinapses lógicas e apela a recursos que tornem a sobrevida mais palatável. Observadores do mundo externo, passamos a questionar a nossa tal racionalidade. Estariam certos, então, estes que desdenham do perigo e aceitam o “não tem nada pra ver”, seguindo a sobrevida quase normalmente? Seríamos nós, portanto, os desprovidos de sentido? Qual é a realidade, afinal? Faça-se a luz, pelamor!
É no questionamento no bom funcionamento das nossas próprias faculdades mentais que caímos no buraco do coelho de Alice.
Queria eu também estar correndo na praia, sol na cara, tomando uma cerveja com os amigos, desprezando a pandemia e fazendo roleta-russa com o existir. Vejam como sorriem os cheios de certeza, tão orgulhosos de orgulhosos de sua condição e ignorância!
A opressão da sobrevivência faz com que se cogite, pois, que se exploda o bom senso e que se dê uma chance ao viver.
Diante disso, esta edição #6 da Papo de Galo_ revista vai contar algumas histórias da ruína psicológica, do nonsense, das situações sem sentido, das lógicas invertidas e subvertidas. É número de literatura. De mentira, ou de verdade, tanto faz. Afinal, quem há de saber se um ou se outro?
A verdade não é líquida. A verdade é gaseificada. A verdade é como o vento. Varia conforme o sentimos.
E se este sentir está conjugado a elementos ficcionais para tornar o vagar sobre este plano que é não mais que um piscar de olhos na história, quem há de julgar? O apelo ao invertido ressoa na energia drenada do agora. Quer-se mais.
E preciso mais que sobreviver.
Editorial publicado pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #6, páginas 6-7.
Apoie!
Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a nossa newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade. Ah! E meus livros estão na Amazon, esperando seu Kindle pra ser baixado.
Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.