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O embate entre inimigo difuso e inimigo concreto

O embate entre inimigo difuso e inimigo concreto

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Quando ascendeu ao poder na Alemanha do início dos anos 1930, Adolf Hitler tinha uma lista de culpados para a situação calamitosa do país. Os judeus eram, para ele, a causa maior da derrocada alemã. Junto com o apontamento da culpa em grupo, os nazistas traziam consigo ideais de patriotismo exagerado e religião controladora que justificam até mesmo a existência de uma raça pura, nascida em território alemão e destruída pelos outros.

Mais ao sul, na Itália, Benito Mussolini, apesar de não compartilhar da visão da raça ariana –o que não significa que o fascismo não seja racista, tanto pelo contrário– tomou à frente do país com discurso patriótico inflamado e que  também listava perigos iminentes a conceitos tão difusos quanto a tal raça ariana.

Os governantes populistas da era moderna se fizeram valer da lição de ambos para ascender com respaldo popular, mobilizando a classe política por meio da pressão da opinião pública e a classe dominante por meio de benesses econômicas das mais variadas formas. Surgiu o autoritarismo populista.

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Benito Mussolini e Adolf Hitler, artífices do autoritarismo populista baseado na violência contra inimigos fabricados em conceitos propositalmente difusos.

Tantos outros exemplos se sucederam, navegando nos extremos dos espectros políticos, aqueles em que as regras de direita e esquerda perdem sentido e se tornam uma atrocidade uniforme de ditadura. São os casos de líderes autoritários como Mao, Fidel, Chavez, Erdogan, Orban, e até Putin.

É fundamental entender um elemento fundamental para que uma ditadura perdure: a existência de inimigo imaginário propositalmente difuso que apele a um medo irracional generalizado e que o líder supremo seja a personificação deste combate. É necessário fulanizar o conceito para perpetuar práticas não republicanas.

As táticas do populismo autoritário

Jair Bolsonaro bebe desta fonte. Apela a inimigos e conceitos conspiratórios que circulam no imaginário popular, mas nada possuem de concretos. Há de se interromper o globalismo e o comunismo em nome de Deus, pátria, família e propriedade –aliás, mesmíssimos argumentos que foram vistos na marcha de 1964, e os mesmo que permeavam o movimento integralista, o espelho fascista tupiniquim, do início dos anos 30.

Mas toda contenda autoritária precisa de um inimigo, igualmente generalista. Assim, a Lula –e aos  petistas– foi tachado o status de vilão maior. Havia, claro, sentido nesta caracterização. A história recente tinha elevado o PT ao centro da uma crise de corrupção de proporções gigantescas.

Lula, Ricardo Stuckert
Lula é a personificação da ojeriza provocada pelo contraditório ao lema Deus, pátria. família e propriedade.
Foto: Ricardo Stuckert

O globalismo tem, contudo, muitas outras faces. O STF. O Congresso Nacional. A imprensa. Não coincidentemente, instituições de contrapeso ao poder executivo. Todos sob a batuta de George Soros, o financiador do esquerdismo global.

Conceitos inegavelmente valiosos, então, direcionavam o estímulo difuso de engajamento: Deus, pátria, família e propriedade. Quem haveria de ser contra isso?

O PT proveu ojeriza necessária para legitimar o inimigo que atua em nome do comunismo e globalismo. Assim, se o grupo que professava os absurdos da esquerda, por associação, outros inimigos apontados eram, portanto, válidos. “Quem acerta uma vez tem mais chance de acertar de novo”, racionaliza-se.

Mas a gaseificidade da glória do Deus, pátria, família e propriedade não se cria sem uma crise severa e um nome que sintetize este sentimento de insatisfação.

A construção da imagem de Bolsonaro foi feita continuamente para abarcar os 4 pilares comunicam com o mais elementar livro-texto sobre populismo autoritário. Faltava a pitada de caos para degringolar a estabilidade política e normalizar o absurdo de um bufão que atenta contra tudo e contra todos. Veio, pois, o impeachment. Era a tempestade perfeita.

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Jair Bolsonaro acena na Câmara dos deputados, em 2016. Naquele instante, ele já estava em campanha presidencial há 2 anos.
Foto: Alan Marques │ Folhapress

Em cada nova aparição pública, Bolsonaro manteve fielmente a linha para se tornar o nome que condensaria os ideais. Simplificou a narrativa a frases de efeito de fácil assimilação.

Para Deus, amealhou acordos com a imensa base evangélica e incorporou o versículo de João 8:32 a tudo que faz.

Para pátria, que a bandeira jamais seria vermelha.

Para família, como pai dedicado e que milita contra os elementos que considera destruidores do conservadorismo familiar religioso, como aborto e homossexualidade.

Para propriedade, faz arminha com a mão apelando a uma masculinidade boçal, além de atacar constantemente os direitos humanos, reservado somente a humanos direitos (sic).

Conseguiu, na simplicidade forçada de uma pessoa sem instrução, vender-se como forasteiro contra tudo e todos num sistema corrupto –mesmo dele sendo parte há 30 anos– e fortalecer seu nome como válvula de escape à revolta coletiva.

Questão de identidade

Bolsonaro assume, com isso, ares de mandante de uma seita engajada e violenta, líder inconteste que unifica os anseios dos cidadãos de bem. Ir contra o presidente é ir contra os básicos elementos que ele semeou desde 2014. Atacar o presidente não significa apenas bater numa pessoa passível de falhas, mas sim atentar contra uma visão idealizada e falsa de identidade nacional brasileira.

Parafraseando Peter Beinart em artigo para a The Atlantic em 22 de agosto de 2018, para os bolsonaristas, Bolsonaro permanece incorruptível –de fato, anti-corrupção– porque o que eles mais temem não é a corrupção das leis; é a corrupção da identidade tradicional brasileira. E no esforço contra esta forma de corrupção –a do tipo personificada por Lula e os petistas– Bolsonaro não é o problema. Ele é a solução.

Assim, inimigos são forjados de acordo com a necessidade e a ocasião, sempre mantendo a aura superior de condução a um propósito maior.

E aqui reside um ponto fundamental para compreender a aliança formada de um autoritário populista. Não se consegue combater um inimigo que não existe, porque o embate está vazio de racionalidade.

Como, então, combater o perigo que Bolsonaro representa?

Enquanto notas de repúdio vão se acumulando, dando a impressão de que já pode ser tarde demais, duas figuras emergiram como elementos principais de inibição da guinada autoritária: os ministros do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello e Alexandre de Moraes.

Celso de Mello, Alexandre de Moraes,
Os ministros do STF Celso de Mello e Alexandre de Moraes, atualmente os maiores freios à escalada autoritária de Bolsonaro.

Por meio de decisões monocráticas, operam ativamente para frear o ímpeto de aparelhamento de Estado ao indicar nomes subservientes às causas do Governo. A eles se juntam uma imprensa que não se rende, em especial a Folha de S.Paulo, alvo preferido do presidente, mas não o acovardado Congresso Nacional.

De concreto, tem se mostrado complicado unir a sociedade e instituições para o perigo que Bolsonaro representa.

E o entendimento está justamente no passo-a-passo de que Bolsonaro se utiliza. Falta o inimigo difuso que alimenta o medo irracional da  população, uma vez que se lança mão de questão objetivas e factuais. Conforme o ministro do STF Dias Toffoli ponderou da maneira correta, porém incompatível com o argumento que desenvolvia, a democracia não é um dado da natureza –assim como também não são Deus, pátria, família e propriedade, atributos primariamente humanos. Ademais, falta o nome que centralize o debate e se faça o elemento concentrador desta nova realidade.

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O minsitro do STF Dias Toffoli durante entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura.
Imagem: Reprodução

Em meio a uma pandemia que vitimiza milhares de brasileiros sob o olhar mórbido do governo, Lula e Ciro Gomes, os dois maiores expoentes da esquerda brasileira, se engalfinham em uma guerra de palavras que desvirtua a urgência do tema e reduz a coalizão a intrigas e fofocas. Em jogo, o protagonismo único e uma série de ressentimentos mal resolvidos.

Ciro Gomes, André Penner, AP
Ciro  Gomes, um dos mais proeminentes nome da esquerda, não consegue entrar em acordo com outras lideranças contra o governo.
Foto: André PennerAP

Ainda que houvesse consenso, há mais um fator que fortalece o posicionamento de Bolsonaro perante seus seguidores. Ao tempo em que se estabelece um inimigo único, óbvio e concreto à estabilidade democrática do país, alimenta-se a imagem de outsider de Bolsonaro, de alguém fora do sistema, que efetiva e comprovadamente luta contra tudo e todos.

Neste embate de convencimento impossível à população, há de se fortalecer a vigilância às instituições de contrapeso, lutando incessantemente para que permaneçam de pé e independentes.

Se o encanto do neofascismo e do populismo fulanizado como conceito dificilmente é rompido sem uma catástrofe, talvez a pandemia e a consequente crise econômica sirvam de ponto trummático de inflexão. Ou talvez ainda vejamos muitos mais novos capítulos de atritos e derrocada civilizatória.


Artigo na edição #1 da Papo de Galo_ revista, em 05 de junho de 2020.

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