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O espírito maligno das tecnologias sociais

O espírito maligno das tecnologias sociais

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Faz pouco mais de 10 anos que publiquei minha primeira pesquisa sobre o tema das redes sociais. Naquela época, o Orkut ainda era a plataforma dominante nas nossas vidas virtuais. Bem ao longe, uma ameaça desconhecida surgia, vinda dos Estados Unidos. Era mais conhecida pelas pessoas que tinham amigos ou familiares no exterior que, por outro lado, não faziam a menor ideia do que era o Orkut.

Embora o Orkut não tivesse sido criado no Brasil, tinha caído no gosto dos brasileiros de uma forma poucas vezes vista. Virou símbolo de uma era em que pessoas dos mais diversos níveis sociais passaram a se comunicar e a colaborar de forma simplificada, agregadas por coisas fúteis como “odeio acordar cedo” ou de utilidade pública, como “a odisseia de morar sozinho”. Éramos conhecidos pelos grupos que participávamos. Em que pese o reinado próspero do Orkut, o fato é que, cerca de um ano depois, o que era uma ameaça desconhecida virou mainstream: o Facebook assumiu a liderança no Brasil, e começou a dar forma a tudo o que conhecemos hoje.

Naquela primeira pesquisa, constatei que, nos grupos do Orkut, havia quatro perfis básicos de usuários, do ponto de vista do que chamamos hoje de engajamento: os que consumiam conteúdo, mas não interagiam; os que consumiam conteúdo e interagiam; os que consumiam e geravam conteúdo; e, por fim, os que consumiam e geravam conteúdo, e também levavam as interações do mundo digital para o mundo físico. Ou seja, não só tínhamos uma gradação que saía do menos comunicativo para o mais comunicativo, como ainda misturávamos os mundos digital e físico. Numa via de mão dupla, pessoas que se conheciam no mundo físico normalmente passavam a interagir no mundo digital, mas também o contrário se fazia bastante comum.

Tenho, até hoje, vários bons amigos desta época, conhecidos nos grupos do Orkut e materializados nos chamados “Orkontros”. Claro que, no meu caso, o processo foi mais fácil – por ter feito parte da geração que viveu o boom de plataformas de comunicação online, como mIRC, ICQ e MSN Messenger –, mas o que eu gostaria de destacar aqui é o espírito que reinava na plataforma e ditava as interações entre as pessoas. Naquela época, não se falava em cancelamento ou em Fake News, porque a lógica da colaboração em grupo exercia um efeito de moderação aos excessos e radicalismos. Ou seja, por mais que alguém se exaltasse ou contasse algo que não fizesse sentido, sempre havia o contraponto ou a intervenção da “turma do deixa-disso”, e o consenso acaba sendo o destino para o qual todos caminhávamos. Era a sabedoria das massas sendo aplicada em sua essência.

Desde que o Facebook tomou a dianteira das redes sociais como a plataforma mais utilizada – e depois Instagram e outras plataformas –, houve uma mudança substancial na forma de interação entre as pessoas: passamos, de usuários que buscavam a cooperação ao fazer parte dos grupos, para usuários que buscam o seu lugar aos holofotes, colecionando cada vez mais likes, curtidas e seguidores para, por fim, fazer fama e, talvez, um pouquinho de fortuna. A partir do momento em que o individual prevaleceu sobre o coletivo, passamos a achar que podemos ser melhores do que os outros, mais interessantes, inteligentes, bonitos, bem-humorados – e mais uma vasta gama de adjetivos que o dicionário os guarda todos. Pois é, o espírito mudou.

Deixei a pesquisa sobre o uso de redes sociais pelas pessoas e passei a focar no uso de redes sociais pelas empresas. Não só em respeito à minha formação como administrador, mas pela oportunidade que se abria diante dos meus olhos: testemunhar o surgimento de uma ferramenta de comunicação que colocaria todas as pessoas (físicas e jurídicas) em pé de igualdade, e que revolucionaria a forma de fazer negócios. Ao longo dos meus mais de 10 anos de pesquisa, as redes sociais ainda continuam a ser um enorme desafio para as empresas. Menos pelo que as plataformas representam do ponto de vista tecnológico ou estratégico dos negócios, e mais pelo difícil processo de falar com pessoas que não querem conversar, mas apenas ser ouvidas.

A chamada “cultura do cancelamento” que vivemos hoje é um reflexo desse modelo de comunicação centrada num indivíduo cada vez mais tomado por uma surdez antissocial e autoritária. Não se busca entender a intenção do outro, compreender seu ponto de vista ou buscar o consenso como forma de aproximação – práticas democráticas que a noção de pertencimento a um grupo nos ajuda a compreender e seguir de forma indelével. Quer coisa mais autoritária do que, se uma pessoa falar algo que não refletir aquilo que penso, simplesmente impedi-la de falar e execrá-la publicamente até que caia no ostracismo? Quer atestado maior de ignorância do que manifestar uma opinião baseando-se num corte de vídeo completamente descontextualizado? São práticas que só prosperam hoje porque a noção de pertencimento, de fazer parte de um grupo, tem cada vez mais deixado de existir, junto com o cuidado naturais que os grupos têm com seus integrantes.

Há quem discorde de mim, dizendo que as manifestações coletivas atualmente existentes nas redes sociais são a nova configuração de grupo, e que o pertencimento se dá de forma mais fluida. Eu adoraria acreditar nessa tese, não fosse o fato de que existe uma clara diferença entre construção coletiva – baseada na clássica fórmula “tese, antítese e síntese” – e construção baseada numa relação entre influenciadores seguidores. Tudo isso catalisado por uma tecnologia que permite interações e replicações com agilidade incomparável e alcance global.

Estamos vivendo tudo isso não porque somos maus, mas porque grande parte de nós não faz ideia do que está vivendo.

Por isso é importante ter a consciência de que, enquanto pessoas e empresas continuarem a viver com medo do cancelamento, toda a sociedade perderá. Perderá porque precisamos entender, de uma vez por todas, que o “nós contra eles” não ajuda a construir um tecido social onde todas as pessoas possam viver dignamente. Temos a grande oportunidade de usar as plataformas de redes sociais para nos aproximar daquilo que somos e queremos ser, e de usar o conhecimento coletivo para a melhoria da própria sociedade. Precisamos melhorar o espírito que habita nossas tecnologias.


Artigo para a Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 42 a 45.


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Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

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