[Antes de que madamo indignado já venha no seu tradicional mau-humor lascar o tradicional “oxe, tá se achano, é? Se plante!”, afirmo, há mais distância entre o Denilson rubro-negro e o senhor máximo do futebol do que julga nossa vã filosofia. Posso continuar? Obrigado.]
Não adianta. Você pode até lutar contra, mas, vá por mim, não adianta. Um gol do meio-campo terá para sempre a aura de ser “aquele que Pelé não fez.” Eternizou-se no imaginário mundial a cena contra a Tchecoslováquia na estreia da mágica Copa de 1970. Pelé recebe a bola antes da linha que divide o gramado no meio, observa o goleiro adiantado e arrisca de lá. O estádio se levanta, a bola viaja, o goleiro retorna desesperado para a sua meta, no que ela toma uma leve curva para a direita, fugindo por centímetros de aninhar-se nas redes adversárias. “Uh!!!!” gritou todo mundo, invariavelmente de sorriso na boca.
Muitos já foram os exemplos de quem executou a façanha aqui e alhures. Coloquemos as coisas em perspectiva, entenda: nunca numa Copa do Mundo. Ainda assim, dentro da pressão por resultados e avaliação estatística do futebol dito moderno, alguém que arrisca do meio de campo foge da regra, quebra a escrita, chuta o balde. Quando a bola sai de seus pés, não há obrigatoriedade de tornar-se tento – claro, quando bem executado. A má execução será assunto de escárnio e chacota.
O instante se faz assim: O jogador vira, observa, lance num relance. Sapata do meio da rua. Ela evolui em arco. Para os que assistem, a primeira reação é de não entender o que está acontecendo. Depois, passa prum “eita” espantado. A redonda já subiu, ensaia descida, mantém-se no prumo. O que fazer? Pra onde olhar? Pra bola, pro goleiro, pro jogador? Ela segue e descai mansa. Agora é dúvida: será que entra? É quando os primeiros sorrisos se fazem, “entra!”, “não é possível, não entra!” Para, foco! Tranca o ar para não caber perigo de perder. Ela se aproxima da meta. No quadro, o goleiro, sim, ele está lá!, correndo destrambelhado de volta, “quê que eu fui fazer lá na frente?” A bola sádica, o goleiro em desespero, o atacante na expectativa, a torcida na dúvida. Ela o cobre, “essa ele não pega!”, resta a lei pesada das traves e suas redes estufadas. Didi, de onde estiver, assopra um além-vento, que desfolheia uma seca que beija de leve a pelota, fazendo reduzir altitude apenas o necessário para abraçar as redes. Um gol para a história.
A dúvida persiste: como comemorar? Pulando, gritando, aplaudindo, abraçando, vendo o movimento no campo? Ora, faça-se como queira! Na cabeça do jogador, hora de extravasar. Golão, golaço. Afinal, Pelé quem? É a redenção de todos os súditos do rei: fazer o gol que Pelé não fez. Na certeza de serem todos apenas ramo do que foi o maior de todos, é o que lhes cabe. A possível equiparação: “fiz aquele gol que nem Pelé fez.”
Talvez tenha sido esta mais uma perene contribuição de Pelé ao futebol. Ao não fazer o gol do meio-campo, criou a categoria que pode elevar o resto. Um alento aos comuns. Uma caridade do ser superior. Se não podem sê-lo, que ao menos, por um instante, numa centelha, sintam-se maior que o rei, maior que o maior de todos. Hoje Denilson, num piscar de olhos, assim foi, vestindo o glorioso manto do Vitória e terá seu nome para sempre marcado na história do Barradão.
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À esquerda, o que Pelé não fez. À direita, o de Denilson, que neste 04 de fevereiro de 2018 realizou sua pintura.
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